Entre o palco e a rua, na origem das danças urbanas no Estado, Lalau Martins identifica seu espaço e conta sua história para o Dança no ES
Com samba correndo nas veias
desde criança, seria muito difícil que o popular e o urbano estivessem
distantes da carreira de Lalau Martins, artista precursora das danças urbanas
no Estado e coreógrafa da Mocidade Unida da Glória (MUG). Muito jovem e dotada
de nítida habilidade corporal, Lalau começou na ginástica olímpica, passou pelo
basquete (em ambos os esportes, foi atleta), até chegar definitivamente à
dança. Já como professora, a artista se aproximou da dança de rua, na qual decidiu
se especializar. Começou a dar aulas em academias de Vitória, algo que não se
via na época, uma vez que o break existia no Estado de forma restrita a manifestações
espontâneas em parte da periferia. Lalau fundou o grupo Vitória Street Dance
(Cia VSD) há 19 anos, o primeiro na modalidade, e levou a dança de rua para os
palcos e festivais de dança conhecidos nacionalmente, ganhando grande
repercussão. A fim de ampliar espaços de visibilidade na Grande Vitória, a
artista criou o Festival de Street Dance, que contou com seis edições até hoje
e deverá voltar – ela promete! Lalau Martins, além de trabalhar também com
projetos sociais em dança, encontra tempo e espaço para outra paixão: o
carnaval. Há quase dez anos na MUG, chegou a coreografar comissões de frente,
carros alegóricos e o Samba Show, trabalhos sempre muito bem reconhecidos na
área. Para ela, a nota é sempre 10!
Confira a entrevista!
DNES: Quais são suas atividades hoje na dança?
Lalau - Eu estou no Projeto Cajun há dez
anos. Lá, trabalho com crianças de 6 a 15 anos, com dança de uma forma geral. Também
estou em Pedro Canário, faço monitorias lá. Os alunos dançavam, mas não sabiam
o que era a técnica. Eu conheci a Fabiana Alves, que coordena o projeto, quando
eu fazia o Festival de Street Dance aqui em Vitória. Na ocasião, o grupo dela
veio para cá para poder se apresentar e percebi um material humano muito bom na
dança. Ela me convidou para ir trabalhar lá só com a turma avançada e aplicando
técnicas mesmo. Aos poucos, fomos fazendo uma renovação na dança lá dentro,
porque a cultura popular é muito forte lá, então, é meio difícil eles aceitarem
a técnica, que é enjoada mesmo. Se você é da área de dança popular, o clássico
se torna massacrante. Hoje, o nível da dança deles cresceu muito. Além disso,
trabalho com a MUG como coreógrafa.
Conte um pouco sobre sua história. De onde partiu seu interesse pela dança?
A dança, de modo geral, entrou na
minha vida pela ginástica olímpica. Aos nove anos, eu comecei a fazer ginástica
olímpica na escola. Era uma alemã que dava aula de Educação Física e havia um
núcleo muito forte. Quando saí do primário, me viram com esse potencial na aula
e me chamaram. Com três meses na equipe da escola, me chamaram para começar a
treinar junto com a seleção capixaba e não parei mais. Fui atleta do Estado
durante muitos anos, porque, depois da ginástica olímpica, ainda fui para o
basquete.
Foi na ginástica olímpica o meu
primeiro contato com a dança por causa do solo, nós tínhamos que fazer aulas de
clássico para a dança ficar melhor. Fui me interessando pela dança. E minha
família adora música, meu pai sempre gostou. Por causa da ginástica, conheci
muita gente de outros esportes. A gente fazia muita corrida de 100 metros na
pista de atletismo, por causa do salto sobre a mesa (que, antes, era sobre o
cavalo), para ter aquela explosão ao saltar. Um técnico de vôlei, que fazia
faculdade, tinha que montar um time de basquete e, como me conhecia e via que
eu tinha muita velocidade, me chamou também. Eu fui e, depois disso, fiquei no
basquete, joguei até uns 35 anos.
Houve um período, quando acabei o
segundo grau, que eu falei “não quero só isso, eu quero dançar”. Todo dia, quando
ia para o Colégio Nacional, no Centro de Vitória, eu ouvia as músicas de dança
da academia Alice Gasparini. Um dia eu subi as escadas, perguntei como era, disse
que eu queria fazer aula. Fui fazer aula normal, como iniciante, aí a Alice
falou “você não pode ficar nessa turma, você tem a dança muito desenvolvida”.
Ela disse “em vez de você fazer só as aulas de jazz, faz todas as aulas que
você quiser e eu te dou bolsa aqui, mas não pode faltar”. Assim, eu comecei a
fazer clássico, jazz, contemporâneo e afro. Comecei a fazer todas as
modalidades que eu podia, cheguei até a turma avançada. Aí ela perguntou se eu
queria começar a dar aula. Comecei e foram 12 anos na Alice dando aula.
E o contato com a dança de rua, como se deu?

Aqui tinha a periferia com o
break, até bem forte, mas não existia aula em academia, nem palco. Guardei uma
grana e fui para Santos, tinha que ir para onde estava o grupo estourado no
Brasil. Fiz de break até tudo o que você pode imaginar dentro de dança de rua.
Quando voltei, abrimos a turma, “bombou”, prejudicou muito a professora de jazz
[risos]. Estavam começando a aparecer vídeos na televisão, não teve jeito. Depois,
as coisas foram se assentando. A primeira apresentação de dança de rua em
Vitória foi com a academia da Alice, no festival dela. Eu saí da academia dela
e fui para Karla Ferreira, fui dando aula. Eu, praticamente, só dancei três
coreografias de dança de rua, não me lembro de ter dançado mais. Sempre fui
dando aula e montando coreografia. Não tinha grupo da minha faixa etária para
dançar.
E, então, você montou o Vitória Street Dance com os alunos?
Montei o Vitória Street Dance
(Cia VSD) com os alunos avançados, há 19 anos, e, nesse percurso, eu já estava
muito envolvida com a dança e a Prefeitura começou a me chamar para dar aulas.
Eu não podia porque estava com muitos lugares para dar aula, já que eu também dava
jazz, clássico, afro, aula de tudo. Comecei a dar aula para duas turmas à noite
em Andorinhas e foi ali que se fortificou o VSD. Já existia o grupo, mas ali
que ganhou força porque havia uma base infantil do Vitória Street Dance lá, e a
gente já estava em outra academia também. Então, eu fiquei com a turma infantil
e com a dos jovens, mais avançados.
Chegou um período em que nós
fomos para o Festival Internacional de Hip Hop, em Curitiba, os dois grupos
conseguiram se classificar para o festival internacional, tanto o infantil
quanto o adulto. E, até hoje, eu tenho aluno que começou lá em Andorinhas e
continua comigo.
O Festival de Street Dance surgiu como?
Como eu já tinha o VSD, precisava
fazê-los se desenvolverem mais, praticarem mais. Ao mesmo tempo, várias outras
escolas já estavam com aulas de dança de rua também, começou a ter outros
grupos dançando no bairro. Eu pensei: “está na hora de eu fazer um festival
para botar esse povo para dançar”, e não tinha onde dançar a não ser em pracinha.
Foi quando eu fiz o primeiro Festival de Street Dance, no Teatro Carlos Gomes,
no início dos anos 2000.

Com o meu grupo mesmo, viajei
muito para São Paulo, Rio, Curitiba. O VSD ia muito para esses lugares para
festivais. Aqui em Vitória, nós passamos uns cinco anos ganhando todos os
festivais que havia, inclusive quando tinha modalidades diferentes de dança.
Depois de um tempo, eu retornei
com um espetáculo, que também foi uma novidade (nunca tinha tido espetáculo de
danças urbanas em Vitória), que foi o “Contemporaneidade em Dança de Rua”, há três
anos.
Foi o que vocês fizeram pelo edital da Secult de Residência, né? Como foi esse espetáculo?
Foi ótimo. Foi um trabalho muito
árduo para os meninos porque, geralmente, quando o pessoal das danças urbanas
chega, principalmente o pessoal de periferia, que tem enraizado o break, eles
não abrem o leque de informação (na cabeça), não percebem que, se fizerem
outras modalidades, aglutinarem movimentos à dança urbana, podem melhorar o
repertório deles como dançarinos. Eu falei “quero que vocês entendam a dança
melhor dentro do corpo de vocês, porque, só eu falando, não está dando para entender”.
Conheci o Bruno Duarte, que veio
coreografar o grupo, já sabia do trabalho dele como dançarino com o Grupo de Rua
de Niterói, que mistura o hip hop, a dança de rua, com o contemporâneo. Eu o
chamei, perguntei se ele queria fazer esse trabalho com os meninos – eles já o
conheciam e tinham muito respeito pelo trabalho dele. Falei que queria
trabalhar com dança de rua e contemporâneo, mais próximo às referências de Pina
Bausch e Rudolf Laban. No início, foi muito sacrificante. A primeira rejeição
deles foi tirar o tênis para dançar descalço.
Este ano, você vai estrear um novo espetáculo com seu grupo. Como será?
Este ano, é o retorno da Cia Vitória
Street Dance (VSD) com o espetáculo novo. A previsão para estreia é agosto.
Esse espetáculo será bem alegre. O Contemporaneidade, que foi o primeiro
espetáculo, era mais intimista. Os meninos tinham vergonha de se mostrar,
então, nós procuramos usar essa introspecção deles e jogar com isso. Esse não,
é bem pra cima, com muita coreografia atualizada, tem um trecho com bastante
afro, que é o afro house, que eles gostam de dançar. Eu acho que o afro house
tem muito a ver com o Brasil, a velocidade do house associada aos movimentos do
afro é algo muito bom.
Como você vê a referência que eles trazem do espetáculo anterior para esse agora? É um processo que teve continuidade ou você está partindo de outra premissa?

O que define a dança de rua e qual a relação com o break e a cultura hip hop? Em que medidas são ressaltados o estilo, a estética e seu sentido político?
Ela tem essa identidade com o
break porque ele foi a primeira expressão corporal do movimento hip hop, junto
com essa sonoridade, a música, que vem até hoje com a black music, o funk
americano, então, tem muita referência do break sim. Principalmente quem é
leigo, se vai assistir a uma coreografia de dança de rua e não vê algum
elemento do break, se confunde, acha que não é dança de rua. Existe uma
evolução histórica da dança até hoje. O divisor do break para as danças urbanas
de hoje foram os clipes do Michael Jackson, que usava alguns passos do break,
mas dançava muito mais em pé – e, no break, o pessoal usa muito o chão, não se usava
tantos saltos. De lá pra cá, houve muita mudança, muita construção de
movimento. Hoje, há vários estilos nas danças urbanas, como Twerk, Afro House, Dancehall,
Ragga Jam, entre muitos outros.
O break fica mais enraizado com a
questão política. As danças mais atuais já perdem um pouco essa identidade. Tem
muitos profissionais que conservam, mas eu creio que se perde um pouco, até por
causa das letras das músicas. O comércio degrada um pouco. Eu acho que a gente
tem que falar de amor, de paz, de muitas outras coisas, mas é verdade que se
perde sim um pouco a questão da luta, da periferia.
Como era a aceitação da dança de rua em relação aos outros tipos de dança e como isso se dá hoje? Há uma abertura à mistura de linguagens?
Eu creio que a maior resistência
foi, na verdade, dos grupos de break, que existiam na periferia, ver que a
dança de rua estava dentro da Praia do Canto e a gente indo para o Teatro Carlos
Gomes. Muito mais isso, porque, nas escolas, muita gente estava dançando. Eu
tive inúmeras bailarinas clássicas que dançaram comigo, frequentaram meu grupo.
Eu não tive tanto problema, a não ser que falavam que eu não era dançarina de
hip hop. E realmente eu não era. Era outro estilo que eu estava trabalhando,
era dança de rua, que englobava vários aspectos do hip hop, e se dançava em pé.
Sobre a mistura com outras
linguagens, eu acho que o espetáculo “Contemporaneidade em Dança de Rua” abriu
muito esse leque. No ensaio aberto, teve debate. O menino que está no grupo de
danças urbanas (UDES), Ronaldinho, esteve lá, debatemos, e outros meninos
também. Depois disso, eu realmente percebi muitos ampliando a visão, pensando no
que poderiam fazer com aquilo ali.
E com o carnaval, como você começou a trabalhar?
Através do esporte, eu conheci
várias pessoas das comunidades que são envolvidas com escolas de samba. Eu já
estava na dança e, através do basquete, me chamaram para coreografar a comissão
de frente da Pega no Samba. Eu amo samba, sempre gostei, é de criação. Minha
família sempre foi muito envolvida com samba, é raiz mesmo.

Depois, no outro ano, fiz ala das
baianinhas e, no ano seguinte, fui para a comissão de frente. Na época, foi
ótimo, levamos quatro notas dez. No meu quarto ano de escola, fui coreografar
carro na MUG, e coreografo até hoje; a comissão de frente está com a Mônica
Queiroz. Também comecei com o Samba Show, que é um grupo de samba para
espetáculo. Não é de passistas, já que o passista não tem, por obrigatoriedade,
uma coreografia. No Samba Show, o grupo dança todas as linhas do samba, inclusive
aquela de samba afro do Recôncavo Baiano, misturadas com essa coisa do glamour
do cabaré, do teatro de revista. Este ano, estou com muitas atividades e tive
de abrir mão de fazer o MUG Samba Show.
Como é seu processo de coreografar no carnaval?
Já existe um enredo e, dentro dele,
vou pesquisando e buscando movimentos. Uma vez, o tema foi cerveja na comissão
de frente. Eu disse “meu Deus do céu, o que eu vou fazer com cerveja?”. A gente
tem que “viajar”. O ponto de partida foi que tinha que ter relação com dança
árabe porque o bulbo da cerveja vem de lá, do oriente médio. Por outro lado, eu
não poderia fazer uma dança árabe, simplesmente. Ainda por cima, a gente tinha
um elemento cênico que era o sol. O sol estava escrito no enredo. O número de vezes
que eu coloquei o copo na minha frente para virar a cerveja e ver o movimento
que fazia… Para transportar aquilo ali para os braços e para o corpo do
pessoal. Aquele foi um desafio bom. Acho que ensaiamos uns três, quatro meses
porque muita gente tinha técnica de dança, outros não. Quem não tinha técnica
de dança, para mim, não era tanto problema. O problema era quem tinha. Porque o
movimento que tinham de fazer era muito mais cru, tivemos que desconstruir o
que existia. Este ano, também não foi tão simples fazer carro porque o Samba Show
dançou em cima dele, teve muita pegada, muito passo aéreo em cima do carro,
senão não apareceria com destaque.