quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Espetáculo UNA traz nuances da mulher contemporânea


O espetáculo solo de dança “Una”, interpretado por Érica Ortolan, estreia neste sábado, dia 02 e será exibido on-line também nos dias 03, 09 e 10 de outubro, sempre às 19h30. O solo propõe uma reflexão sobre os mais diversos desconfortos que as mulheres são levadas a sentir em relação à natureza de seus corpos.


Obra com Érica Ortolan é a segunda estreia na temporada do projeto Tríptica. Foto: Esteban Bisio.
 

Com a estética como ponto central e com referência aos ciclos femininos da vida, uma dramaturgia corporal é costurada como resgate, despertar e conscientização da emancipação corporal feminina.

 

A direção é de Patrícia Miranda e Eliane Miranda. A trilha sonora é uma criação original de Dori Sant’ana. O espetáculo poderá ser visto gratuitamente no YouTube do projeto Tríptica, que reúne três bailarinas do Estado para a montagem de trabalhos solos e oficinas de formação em dança.

 

Este projeto é uma realização da Voe Produções, produção da Companhia do Outro e está sendo realizado com recursos do Funcultura – Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo através do edital 030/2019.

 

Projeto Tríptica


Com realização da Voe Produções e produção da Companhia do Outro, o projeto reúne três bailarinas para montar três espetáculos solo, a partir das inquietações sobre o feminino, o ser mulher na atualidade e as questões relacionadas às dores e aos prazeres. Todas convidam diretoras mulheres das artes cênicas capixabas e elaboram oficinas de formação, ensaios abertos, bate-papos e apresentação para escolas do Estado.


 

SERVIÇO


UNA - TEMPORADA DE ESTREIA


02, 03, 09 e 10 de outubro

19:30 horas

YouTube do projeto: https://linktr.ee/triptica 

Gratuito

 

FICHA TÉCNICA:

Intérprete-criadora, pesquisa e concepção _ Érica Ortolan

Direção Coreográfica _ Patrícia Miranda

Direção Dramatúrgica e Preparação Corporal _ Eliane Miranda

Direção Musical e trilha sonora _ Dori Sant'Ana

Iluminação _ Daniel Boone

Direção de arte _ Thila Paixão

Identidade visual _ Alê Flor Ferraz

Assessoria de Imprensa _ Karolina Lopes

Produtor _ Luiz Carlos Cardoso

Câmeras, edição e fotos para divulgação _ Esteban Bisio

Produção _ Companhia do Outro

Apoio _ Balé da Ilha Escola de Dança

Agradecimentos _ Nieve Matos e Daiane Eilert

Realização _ Voe Produções

 

Classificação: Livre

 

Projeto realizado com recursos do Funcultura – Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo através do edital 030/2019

terça-feira, 28 de setembro de 2021

RENATO SANTOS E A CONSTRUÇÃO DE UM LEGADO DENTRO DA DANÇA AFRO-BRASILEIRA CÊNICA

 

Um dos nomes mais importantes das artes Afro-Brasileiras Cênicas do Espírito Santo, Renato Santos tem no seu entorno, entre família e comunidade onde nasceu e cresceu, suas primeiras referências de arte e de identidade. Nos anos 80, formou-se em ballet clássico pela Royal Ballet e estudou a Dança Afro-Brasileira Cênica do Método de Mercedes Baptista no Studio de Ballet Lenira Borges, além de ingressar no curso de Educação Física da UFES. Como artista, pesquisador e professor, Renato abriu caminhos à época não trilhados no estado – árduos especialmente devido a uma sociedade racista em sua estrutura –, o que resultou em significativo legado para a dança capixaba. Ao lado de parceiros, atuou pela profissionalização da categoria Dança Afro-Brasileira Cênica; é um dos fundadores do grupo NegraÔ; foi coordenador do curso de Dança da Escola Fafi e responsável pela elaboração do Curso de Qualificação em “Dança Afro-Brasileira Cênica”, Método Mercedes Baptista, do Museu Capixaba do Negro – MUCANE (para onde doou sua produção escrita sobre esta arte acadêmica). Atualmente, Renato é coordenador da ação multidimensional de avivamento da História da Diáspora Africana no Centro Histórico e do Morro Fonte Grande/Piedade, no Centro de Vitória. Confira a seguir a entrevista concedida pelo artista ao Portal Dança no ES  


Fotos: Luiz Carlos Cardoso

 

P: Como se deu a entrada da dança na sua história?

 

Eu sou de uma família muito tradicional da cultura e da arte no Espírito Santo, que fundou a escola de samba Unidos da Piedade, que mantém a Folia de Reis do bairro, banda de Congo... e minha tia era uma famosa radialista do Espírito Santo, a Maria José, então os artistas que vinham do Rio de Janeiro e até de fora do país, ela que entrevistava, trazia aqui para casa. Eu acabei conhecendo muitos artistas importantes de várias áreas, então meu contato com a arte é desde criança. E com meu avô, ele ensinou uma arte marcial para mim e meu irmão, que é o Bassula, ou jogo de pernada, um jogo angolano. E também foi onde começou a capoeira. A escola de samba, em 1971, saiu com o tema Baía de Todos os Santos; então eles trouxeram aqui, nessa época, uma pessoa da Bahia para ensinar a capoeira e também trouxeram pessoas do terreiro de candomblé para ensinar as danças dos Orixás, é aí que eu tenho contato com isso. Então eu já vinha com esse convívio e esse conhecimento que minha família tinha de artista; e ganhei uma bolsa na escola da Lenira Borges, nos anos 70, eu era um adolescente.

 

P: Como foi sua passagem pela escola da Lenira Borges?

 

Foi uma passagem longa, me formei. E ali ela trazia muitos coreógrafos de fora, e ela criou uma amizade muito grande com a Mercedes Baptista, eram amigas mesmo, de trocar figurinhas. E a dona Lenira a chamou para fazer uma coreografia, e ela disse “não vou fazer uma coreografia, vou introduzir esse estilo de dança na sua academia”. E ela foi, começou a dar aula pessoalmente, e depois deixou o Raimundo Netto, que continuou dando aula na Lenira uma boa parte dos anos 80 e depois foi para a Alemanha. E foi ali que a gente absorveu a técnica, o método Mercedes Baptista de Dança Afro-Brasileira Cênica, uma dança acadêmica. Porque o pessoal confunde muito quando a gente fala de dança afro, pensa que é uma dança não acadêmica, mas é uma dança acadêmica, que tem as suas posições, posturas e movimentos, que são os elementos de uma dança cênica.

 

P: Como a Dança Afro-Brasileira Cênica se estrutura?

 

Dentro do universo da dança Afro-Brasileira Cênica, existe a dança clássica, que é baseada nas danças dos Orixás, e, basicamente, quem é detentora dessa escola clássica é Mercedes Baptista, além de Joãozinho da Gomeia, e, como mentor intelectual, Abdias do Nascimento – essa é a tríade da dança clássica Afro-Brasileira Cênica. É uma dança cênica, de palco. Tem a parte da dança moderna, que aí já tem influência do Jazz, e tem também a parte da dança afro-brasileira contemporânea (um dos grandes dessa escola é Ismael Ivo). Então a dança Afro-Brasileira Cênica tem todas as suas camadas históricas: dança clássica, moderna e contemporânea. É igual à dança ocidental. Não é um apêndice da dança clássica, nem da dança moderna, nem da dança contemporânea, ela é uma nova estrutura, e essa nova estrutura tem o seu conteúdo clássico, moderno e contemporâneo.

Então tivemos contato com Mercedes Baptista em 70 e 80, Lennie Dale em 80 e 90, e, nos anos 80, começando o surgimento da dança contemporânea em São Paulo – aí a gente começa a ter um contato rápido, porque logo depois o Ismael Ivo foi para fora. Mas eu consegui ter contato com todas essas camadas. Por isso é que eu falo: é uma dança cênica, de palco e tem essa estrutura; porque o que eu vejo as pessoas escrevendo e falando... não captam isso, e muito por racismo estrutural, por pensar que por ser uma dança africana, afrodescendente, não tem a capacidade de ter todas as camadas de uma dança cênica, então começa-se a discutir... “é uma dança folclórica, popular, tradicional...”. É baseado na dança folclórica, na dança popular, na dança tradicional, na dança religiosa, assim como o clássico é. Quebra-nozes é um tema folclórico russo. As fadas, os gnomos que existem na dança clássica são do folclore europeu, da Europa Caucasiana. E é uma dança religiosa, porque os elfos são seres da religião europeia não cristã. Então se vive isso com uma facilidade enorme na dança europeia clássica, e quando chega na nossa dança cênica, começam a falar que é macumba, é feitiçaria, poxa, mas não usam as mesmas coisas? Por que não chamam as fadas, os gnomos da dança clássica de macumbaria, feitiçaria?

Essa é uma maneira de ver o preconceito estrutural, que não declara que está fazendo racismo, mas usa toda a estrutura do conceito já existente para fazer racismo, para a opressão contra a dança cênica afrodescendente. E dentro da dança cênica afrodescendente tem as danças africanas nacionais, que é Dança de Angola, Dança de Nigéria, Dança do Congo, mas dança Afro-Brasileira Cênica é um guarda-chuva cênico que abriu a porta para todas essas manifestações cênicas de palco que hoje existem.

 

P: Como você chegou a fundar o NegraÔ, qual era o contexto?

 

Quando eu entro na Ufes, eu levo todo esse conhecimento para lá. A dança afro, os conhecimentos das tradições dos povos Bantus do Morro da Fonte Grande, eu levo tudo lá para dentro, eu não me divido, eu sempre fui inteiro, não sou daquelas pessoas que... “quando você se descobriu negro? Quando você se descobriu afrodescendente?”. “Desde sempre!” Eu entrei na Ufes sabendo quem eu sou e sabendo o que eu tenho; e, entrando lá, eu impus isso. E lá encontrei parceiros, que foram o professor de História Cleber Maciel, Verônica da Pas, Ariane Meireles, Lavínia, Sueli Carvalho, Sueli Bispo, entre outros, esses são os mais próximos. Como eu já tinha formação de clássico, já tinha a formação de dança afro cênica, a gente começou a divulgar isso dentro da Ufes, e criamos um grupo de estudos (nos anos 80). Tivemos como mentor o Cleber Maciel; tivemos o professor Paulo Roberto também nos conduzindo, mostrando autores. Por isso que eu falo que é uma dança acadêmica, porque há um estudo acadêmico extremamente aprofundado, e hoje eu estou compilando isso, tenho várias coisas já escritas. Eu vi que há uma carência. Depois de tanta gente ter feito, ainda há pessoas com dúvidas do que é – e se é. No mínimo, por falta de conhecimento.

Montamos o NegraÔ para fazer a reafirmação de que é uma dança cênica, de que é uma dança de palco. A primeira coreografia profissional foi em 1991. Então a gente considera o primeiro momento da dança Afro-Brasileira Cênica capixaba com a primeira coreografia do NegraÔ, que faz 30 anos agora. E este ano é muito simbólico, porque faz 70 anos que Mercedes Baptista retorna dos Estados Unidos, ela foi para lá através da bolsa que ganhou, e lá ela tem contato com o movimento black (preto) nos Estados Unidos.

 

P: Os debates e as rodas de conversa sempre estiveram presentes no NegraÔ e nos aulões, né? Você também já foi coordenador do curso de Dança da Fafi e responsável pela criação do curso de Qualificação em Dança Afro-Brasileira Cênica no Mucane. Qual é seu olhar sobre a educação e o ensino da dança afro?

 

É uma arte acadêmica, que faz parte de uma formação corpóreo-motora, cognitivo-sociocultural, que é a dança, em um país essencialmente africano, e que estava fora de todo um contexto pedagógico e didático. O que nós começamos a fazer, como somos professores, começamos a transformar, a criar um espaço didático para essa arte acadêmica, porque até então não existia um espaço didático para isso. A gente começou a escrever sobre a técnica, e essa técnica das artes cênicas tem todos os seus métodos, nomes, porquês, como e onde. Começamos a escrever sobre isso e a repassar esse saber na posição e do tamanho que ele é.

O NegraÔ surgiu para confirmar isso, e eu posso dizer que é um dos primeiros movimentos no mundo, porque todos os outros grupos de dança cênica afro-brasileira começaram a se autodenominar como dança folclórica. Nós fomos um dos primeiros, senão o primeiro, a assumir a dança Afro-Brasileira Cênica enquanto arte acadêmica, que contém seus saberes e suas camadas.

Chegando à Fafi, seu método-base tinha se deteriorado, porque, com saída do mestre cubano de lá, o método cubano tinha perdido sua essência na escola. E nesse período em que fiquei lá (de 2009 a 2013), eu recuperei a técnica cubana, que é da Alicia Alonso. Nesse momento, já que eu estava recuperando o método da Alicia Alonso, pensei “o método da Mercedes Baptista está esquecido aqui também”, então fui e o recuperei conjuntamente, usando o mesmo tempo, espaço e as facilidades que um cargo de coordenador do tamanho de uma escola como a Fafi oferece, e montei o curso de Qualificação em Dança Afro-Brasileira Cênica.

Eu sou formado no método Royal, por que não introduzir este método no lugar do cubano? Porque, na sua raiz, a Fafi foi instituída com o método cubano, então o respeito que temos que ter pelas raízes das escolas é algo importante no mundo da dança. Como passou a ser uma escola técnica, não podia ter só o método clássico, teria que ter o método moderno e contemporâneo, então também ajudei a escrever isso para a Fafi. E aproveitando, como eu já estava escrevendo, escrevi o método da Mercedes Baptista para o Mucane, em 2013. Mas, no Mucane, os professores estavam tendo dificuldade de passá-lo, porque eles não o conheciam muito bem, que consiste em posturas, movimentos e direções. Fui e escrevi o método.


P: Sobre a sua trajetória como bailarino, gostaria que falasse um pouco sobre seu contato com a dança-teatro e o espetáculo “A Flor da Pele”, um dos mais recentes antes da pandemia.

 

Nesse caminho, existe uma outra escola em que aprendi muito, que é a escola da dança-teatro. Houve um festival patrocinado por uma marca de cigarro e, naquela época, veio a Pina Baush e escolheu algumas pessoas para ficar uma semana ou duas com ela e a companhia dela no Brasil, e ela fez uma apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro depois. Ela veio, deu palestra, aulas para esse grupo que ela escolheu, e uma dessas pessoas fui eu. Foi aí que tive contato com essa técnica.

Toda a técnica do gestual era feita para ter uma intencionalidade de fala, de ser uma fala, de ser um sentimento. Ali foi uma coisa libertadora. No afro a gente tem isso, mas eu também venho de uma escola clássica que não tem muito isso, aí eu consegui usar aquela técnica do clássico com todo o potencial que eu conseguia fazer no afro, através do que Pina Baush provocou na gente. Ela dizia “seu salto é lindo, sua pirueta é linda, mas todo mundo que é formado em ballet faz. O que é isso para você?”. É a técnica para além da técnica. Achei meio duro na época, pensava “levei tantos anos para adquirir isso...”. Mas foi fazendo total sentido, virou a chave. A dança afro já tem isso na sua essência, porque vem de uma dança sagrada. Ismael Ivo, por exemplo, conseguiu fazer essa junção, e eu comecei a entendê-lo melhor depois disso também.

Foi aí que comecei a fazer essa ligação da dança clássica com a dança afro e com essa potência teatral. E criei essa minha última coreografia, “A Flor da Pele”, que prenuncia o que iria acontecer, a pandemia, a solidão, a angústia. Eu dancei umas três ou quatro vezes, e pensei “ah, não posso dançar mais essa coreografia”. “A Flor da Pele” eu não quero dançar mais. Dói muito. Tem danças que doem. Você termina de dançar, ela te dói no sentimento, é uma angústia, e angústia dói no corpo. Este é um espetáculo de dança-teatro – eu gosto de sinalizar qual técnica é abordada porque danço várias técnicas. Quem me conhece da dança afro, por exemplo, vai esperando um espetáculo de dança afro. Eu danço também as danças urbanas, sou um dos primeiros a dançar danças urbanas no estado.

 

P: Considerando desde quando você inicia todo esse movimento da dança Afro-Brasileira Cênica aqui, e ele vai ganhando também as escolas, como você avalia o cenário da dança no estado? De lá para cá, o que se tem feito a partir disso?

 

Uma parte da minha família é do Rio de Janeiro, então eu ia passar as férias de verão no Rio. Tive contato com as escolas de classe média de lá, Lennie Dale, técnicas de dança. Eu consegui ter essa formação. Hoje há uma grande diferença, porque nós estamos aqui no estado e temos essa formação, então a gente consegue passar para mais pessoas. Na minha época, você contava nos dedos: éramos eu, Ariane, Walter e Ciça, que nos juntamos e criamos o NegraÔ.

Hoje formamos muitas pessoas, e há muitas pessoas lá na Ufes que podem fazer isso. Agora, por que não fazem é uma outra história. Mas hoje há essa possibilidade. A Ariane está aqui, eu estou aqui, Walter está aqui, Ana Cecília está aqui; nós não saímos daqui. A grande diferença é que hoje há uma matriz de conhecimento, o que na época não se tinha. Isso se deve muito a uma obstinação da Lenira Borges em trazer todas essas técnicas para o Espírito Santo. Hoje existe essa matriz aqui, ninguém precisa se deslocar para o Rio ou para São Paulo, como a gente fez na nossa época.

O que é necessário hoje? É necessário que os legados sejam reafirmados, porque o movimento da arte acadêmica da Dança Afro-Brasileira Cênica e as suas ramificações clássica, moderna e contemporânea ganharam corpo e estudos acadêmicos dentro da Ufes. Não éramos muitos; hoje somos muitos. O que eu provoco em relação à juventude que está lá hoje e tem acesso a essas informações é que eles, jovens, assumam esse legado. Quem está dentro da Ufes, assuma esse legado dentro da universidade, porque é uma dança acadêmica; que assuma esse legado não como uma dança folclórica, popular ou tradicional, porque não é.

 

P: É essencial que haja o cuidado e a responsabilidade de manter vivo o que foi construído até aqui, né?

 

Na nossa época, não tinha grupo de estudos da cultura africana e afro-brasileira, hoje tem na Ufes. E por que abandonaram esse legado na Ufes? Portanto é ético, penso eu, estes assumirem esse legado dentro da universidade, porque o trabalho que nossa geração fez não pode ser apagado ou jogado fora; hoje é uma herança dos povos africanos no Espírito Santo, e é um espaço de afirmação e reafirmação, portanto a Ufes e os afrodescendentes que estão na universidade precisam urgentemente assumir esse legado, não como uma dança folclórica, tradicional ou da pesquisa sociológica ou antropológica. Não. Como arte acadêmica cênica.

Hoje existe um núcleo de estudo da cultura africana e afro-brasileira dentro da Ufes. Há um capital, um cargo para isso. Na nossa época não existia. Se ganham pouco ou ganham muito, na nossa época a gente não ganhou nada. E se acha que é pouco, lute para ganhar mais, mas negar, apagar ou afrouxar por isso... num país racista você vai ganhar pouco e não vai ser valorizado. Então ou luta, ou luta.

Nosso trabalho transformou-se no NegraÔ e em uma profissão no Espírito Santo, e essa profissão se transformou em uma escola, que é mantida com o dinheiro público, e isso para uma arte que há pouco tempo era chutada; para ter um espaço, uma sala com professores, em uma estrutura paga com dinheiro público... é um avanço absurdo, não se pode perder isso. O curso de qualificação tem que continuar aberto, o Mucane tem que continuar aberto. Todos os legados que a minha geração, enquanto aluno, e a geração do Cleber Maciel, enquanto professor, deixaram na Ufes não podem morrer.

Portanto, esse legado não ser tratado de uma maneira no mínimo ética dentro da Ufes... porque, no ano em que faz 70 anos da dança Afro-Brasileira Cênica e faz 30 anos de profissionalismo no Espírito Santo, a Ufes não comemorar e não escrever sobre isso é uma falta de respeito a Cleber Maciel, a Verônica da Pas, a Walter, a Ariane, a Ciça e a mim. Eles têm a obrigação, porque trata-se de uma instituição, e a Constituição da nossa nação obriga que eles façam isso, eles são pagos para isso, têm o dever moral de fazer isso. No Mucane, há o dever moral de manter o curso aberto. Em plena década do afrodescendente, está acontecendo isso, um apagamento de um conhecimento, de um saber afrodescendente, um apagamento dentro da Ufes, um apagamento dentro do Mucane. Isso pode ser considerado um crime de leso à humanidade e um desrespeito aos povos africanos, principalmente aos enraizados no Espírito Santo.

 

P: A partir da sua vivência, temos aí a importância de ter a dança, particularmente a dança afro, também como arte acadêmica, mas, para além disso, o que é a dança para você, na sua vida?

 

Eu vivo numa comunidade em que a música e a dança são muito presentes. Nós dançamos aqui em todas as épocas. Na Folia de Reis, dançamos para o menino Jesus criança, depois, no Carnaval. A escola de samba ensaiava aqui no quintal da minha casa; da casa do meu avô saía a Folia de Reis, então eu não me conheço sem a dança. E não me conheço sem a dança com os corpos africanos, afrodescendentes, e fazendo isso com uma potência enorme. Eu nunca não vi isso. Para mim, é a coisa mais natural possível. É difícil falar o que é. É porque é; é porque existe, é minha vida comunitária, é minha vida pessoal. Eu não sei o que é, porque eu não sei o que não é. Eu nunca não tive a dança, a música, a cultura, pessoas afrodescendentes potentes, bonitas, saudáveis, pulando, dançando, com o corpo em pleno agito, em plena potência máxima, em pleno volume máximo. Eu nunca não tive isso. Posso falar o que não é. O que não é, é a morte.

 

P: Você tem planos de um novo trabalho de dança?

 

Eu tenho vários prontos. Eu continuo criando. Tenho alguns antigos, que estou recuperando, e tenho vários outros novos que eu vou lançar. O baú já está cheio. Quando terminar a pandemia e abrir algum espacinho, eu já estou pronto. Estou treinando todo dia. E isso foi outra coisa que eu aprendi com a Mercedes, e depois a Pina Baush me confirmou – isso é o básico que você tem que fazer, isso espera-se, o que a gente quer é além disso.

 

P: Algum desses trabalhos já tem nome?

 

Tem, sim. “A Quinta Parede”, que é um espetáculo de multiplataformas. Eu peguei as músicas de Sérgio Sampaio, os textos de Rubem Braga e juntei, fiz um conto de um jornalista angustiado porque não tinha mais o que escrever, mas a cabeça dele estava cheia, ele tinha que escrever. Aí eu escrevi sobre essa pessoa, usando duas plataformas diferentes (música e crônica) e passei para a plataforma da dança-teatro. Esse é o meu espetáculo de reestreia. É um espetáculo que eu fiz em homenagem a Rubem Braga em 2001. Pretendo retomá-lo porque acho muito parecido com o momento de agora, que é uma pessoa dentro de uma casa, sozinho, isolado, tendo que produzir em home office. E tem um novo, que eu estou fazendo, que aí é segredo.


domingo, 19 de setembro de 2021

Frutos do Ventre oferece oficina e apresentação de dança do ventre

O evento beneficente Frutos do Ventre acontecerá no início do mês das crianças, nos dias 01, 02 e 03 de outubro. A edição de 2021 será para ajudar o Instituto Araújo que, dentre outras atividades, oferece oficina de balé para crianças em situação de risco. Para arrecadar doações e ajudar crianças a terem a oportunidade da vivência da dança em suas vidas, serão feitas uma oficina de dança do ventre, uma palestra e uma live show. 


A bailarina Márcia Ameenah ministrará oficina de dança do ventre. Foto: Jay Andreotti.

Para abrir o evento, acontece uma live no dia 01/10 às 18h30 com o tema: "O Poder Criativo do Ventre". Nesta live será possível compreender o que é o ventre, seu potencial criativo, seus frutos e como despertar esse potencial. Será uma oportunidade para muitos insights, assim como permitirá aos participantes compreender toda a proposta das atividades que virão em seguida.

No sábado, dia 02/10, as atividades acontecem pelo Zoom. Às 9h, a inspiradora Tânia Telles dará uma palestra sobre "Autoliderança Criativa". Tânia é mentora de carreira, consultora, palestrante e mãe de 4 filhos. Às 9h30, Márcia Ameenah dará uma oficina prática de dança do ventre com o foco no despertar da criatividade. Com uma abordagem para iniciantes na técnica da dança do ventre, esta é uma excelente oportunidade para quem deseja se permitir essa experiência e ainda ajudar as crianças do Instituto Araújo.

No domingo, dia 03/10 às 17h, ocorre uma live show no IG da organizadora do evento,  @marcia.ameenah. As bailarinas que irão se apresentar, além de serem profissionais de diversas partes do país, são todas mamães. A sensibilidade materna estará presente em cada dança em prol da causa beneficente!

Para participar das atividades gratuitamente é necessário fazer inscrição. Assim, as pessoas participantes receberão as orientações para a palestra e oficina, o link da sala de aula e, além disso, conseguirão emitir o certificado de participação após o evento.


SERVIÇO

FRUTOS DO VENTRE

GRATUITO, MEDIANTE INSCRIÇÃO

INSCRIÇÕES E INFORMAÇÕES: https://doity.com.br/frutos-do-ventre 

01/10: Live "O Poder Criativo do Ventre", às 18h30, no IG: @marcia.ameenah.

02/10: Palestra com Tânia Telles: "Maternidade e Autoliderança Criativa", às 9h. Oficina com Márcia Ameenah: "Dança do Ventre e o Despertar da Criatividade", às 9h30.

03/10: Apresentação com bailarinas de todo o país, às 17h, no IG: @marcia.ameenah.

Todo o evento acontecerá por doações voluntárias feitas diretamente para o Instituto Araújo: PIX: 08703093743 e PicPay: @ozeti.delourdes.araujo


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Dança em Trânsito faz convocatória para residência


ROTAS, a tradicional residência de intercâmbio dirigida pela coreógrafa Flávia Tápias em parceria criativa com artistas convidados de cada edição do Dança em Trânsito, abre convocatória para intérpretes criadores das cidades por onde a residência passará em 2021 –Florianópolis, Mangaratiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, São Luís, Belo Horizonte, Vitória e Vila Velha. 


Registro de edição anterior da residência de intercâmbio. Foto: Fernanda Vallois.


Este ano, a linguagem da dança contemporânea será o elo do diálogo entre diversos estilos de dança e música do país para criar um pequeno recorte artístico da cultura brasileira, original e inédito: ROTAS BRASILEIRAS. Todos os estilos de dança serão aceitos: danças urbanas, passinho, forró, jongo, dança-afro, ballet clássico, carimbó, sapateado, gafieira, etc; e o que mais surgir dentre as propostas enviadas pelos candidatos.

 

Por meio dessa convocatória, o Dança em Trânsito selecionará para participar da residência ROTAS BRASIS, de 8 a 14 artistas, dando prioridade aos profissionais da dança das cidades onde ROTAS será parte da programação presencial. Os artistas selecionados poderão, no entanto, se apresentar em uma ou mais cidades e não apenas na sua de origem. O início dos trabalhos será realizado de forma online e os encontros presenciais acontecem durante a realização do Festival . 

 

Para participar, o profissional deve enviar para o email news@espacotapias.com.br três linhas do currículo, um pequeno vídeo no YouTube ou Vimeo do intérprete em cena ou em ensaio, a cidade de residência, duas fotos e o contato telefônico.

 

Dança em Trânsito será realizado entre outubro e dezembro de 2021, em formato híbrido, envolvendo um total de 21 cidades do Brasil, com espetáculos, performances e ações online e presenciais (respeitando as orientações sanitárias). Algumas ações serão transmitidas via streaming a todo o público nacional e internacional de forma gratuita.

 

O Festival tem como característica marcante a ocupação de espaços urbanos, além de espaços convencionais. Há 19 anos, o projeto abarca apresentações artísticas, reflexão e intercâmbio entre grupos de dança, circo e teatro de diversas cidades do Brasil e do mundo. Sua atuação abrange ainda residências artísticas, projetos formativos – aulas, oficinas de criação, workshops, palestras - abrindo canais para novos talentos da dança e a formação de plateias, estimulando o interesse pelas artes e pela dança.



SERVIÇO

CONVOCATÓRIA ROTAS - RESIDÊNCIA DE INTERCÂMBIO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA PARA PROFISSIONAIS


Com remuneração a combinar 


Informações: www.dancaemtransito.com.br

 

Para seleção prévia, cada profissional deverá enviar para o email news@espacotapias.com.br até 20/09:

 

- Três linhas do currículo;

- Um pequeno vídeo do intérprete em cena ou em ensaio (YouTube ou Vimeo);

- Em qual cidade reside;

- Duas fotos;

- Contato telefônico.


Apresentado por MINISTÉRIO DO TURISMO 

Patrocinado por INSTITUTO CULTURAL VALE / ENGIE 

Realização: ESPAÇO TÁPIAS / SECRETARIA ESPECIAL DE CULTURA, MINISTÉRIO DO TURISMO, GOVERNO FEDERAL - PÁTRIA AMADA BRASIL  

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Tríptica abre temporada de estreias


O solo de dança “Corpófera”, interpretado por Danielen Brandão, estreia neste sábado dia 18 e será exibido online também nos dias 19, 25 e 26 de setembro, sempre às 19h30. A obra convoca a mulher, suas forças selváticas e ancestrais, com referências na dança Butô e no livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés.

Espetáculo Corpófera inaugura temporada de estreias do projeto Tríptica. Foto: Esteban Bisio.


Danielen propõe investigar quais danças, seres e forças compõem esse movimento feminino de espalhar sementes, sem perder a voracidade, criticidade e o ímpeto revolucionário. Uma resposta à tentativa social de domesticar e docilizar corpos femininos. A direção é de Roberta Portela.

O espetáculo poderá ser visto gratuitamente no YouTube do projeto Tríptica, que reúne três bailarinas do Estado para a montagem de trabalhos solos e oficinas de formação em dança.

Este projeto é uma realização da Voe Produções, produção da Companhia do Outro e está sendo realizado com recursos do Funcultura – Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo através do edital 030/2019.

PROJETO TRÍPTICA

Três bailarinas se unem para montar três espetáculos-solo a partir das suas inquietações sobre o feminino, o ser mulher na atualidade, suas questões, dores e prazeres. Todas convidam diretoras mulheres das artes cênicas capixabas e elaboram oficinas de formação, ensaios abertos, bate-papos e apresentação para escolas do Estado.

SERVIÇO

CORPÓFERA - TEMPORADA DE ESTREIA

Gratuito

18, 19, 25 e 26 de setembro

19h30

YouTube do projeto: https://linktr.ee/triptica

Classificação: Livre


FICHA TÉCNICA:
Intérprete-criadora, pesquisa e concepção _ Danielen Brandão
Direção _ Roberta Portela
Direção musical e trilha sonora _ Priscila Reis e Fábio do Carmo
Iluminação _ Daniel Boone
Direção de arte _ Thila Paixão
Produtor _ Luiz Carlos Cardoso
Fotografias, câmeras, captação audiovisual, edição e pós-produção de vídeo _ Esteban Bi
sio
Equipamento de captação audiovisual _ Heytor Gonçalves
Produção _ Companhia do Outro
Apoio _ Cine Teatro Ribalta
Realização _ Voe Produções

terça-feira, 14 de setembro de 2021

AFRICANIDADE, CIÊNCIA E "RELIGARE": O BAILARINO PAULO FERNANDES CONTA SOBRE SUA TRAJETÓRIA

 

A curiosidade de um cientista talvez tenha sido a força motora que o fez ir para trás e adiante no tempo. Atrás, como um arqueólogo em busca de suas raízes, sua história, sua ancestralidade. Adiante, a fim de criar conexões ainda inexistentes, outras realidades, palpáveis ou imaginadas, desejadas. Paulo Fernandes é bailarino, coreógrafo e pesquisador da cultura Bantu, mas também muito mais do que isso. Com mais de 40 anos de carreira, Paulo é um artista multimídia, que conjuga diversas linguagens artísticas (ou seriam científicas?) em seus trabalhos, como cinema, teatro, dança e artes visuais, construindo um encontro muito particular na gestualidade e na estética. Pela crítica francesa, foi reconhecido como um “dançarino das profundezas do simbolismo afro-brasileiro”. Para o Espírito Santo, é um dos nomes de maior importância da dança contemporânea realizada por aqui, estando presente de forma pioneira nesta arte. É fundador da Cia. Enki de Dança, na qual atua até os dias de hoje. Como pesquisador, entre diversas contribuições, inaugurou o acervo “Memória da Dança” no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), além de receber honrarias e o título de Notório Saber Cultural. Confira abaixo a entrevista que o artista concedeu ao Portal Dança no ES!  


Foto: Luara Monteiro


P: Como começa sua história na dança?

 

Minha trajetória se deu a partir da minha descendência (e há a complexidade de se entender isso no Brasil, particularmente a questão negra). Meu bisavô foi um dos responsáveis por trazer o Congo da África para cá. Eu encontrei essa referência no livro de Guilherme Santos Neves, no “Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba”, e eu começo a fazer essa investigação de retorno da minha ancestralidade. Eu só conheci meu bisavô com nove anos de idade. Nasci aqui no Centro de Vitória, minha mãe veio para cá cedo, ela é de Acioli e todos os meus ascendentes são da comunidade do Morro do Feijão, onde meu bisavô cria a Banda de Congo Alegria. Guilherme fala de algumas músicas que eu tentei buscar para resgatar essa sonoridade, porque isso tinha particularmente a ver com a minha dança, e eu começo a montar um quebra-cabeça para entender essa sonoridade que transpassava meu corpo e eu não tinha noção.

Esse material arqueológico foi me dando densidade corporal. Eu lembro que eu tinha 7 ou 8 anos, o “shopping” que havia aqui era ali na Costa Pereira. Eu adorava ir lá ver carrinho, coisa de criança, e tinha música, eu começava a dançar no colo da minha mãe. Minha mãe me largava no chão e eu dançava ali, sem vergonha, sem pretensão nenhuma. Nessa atuação, um cara de uma loja achava interessante o que eu fazia, porque indiretamente eu estava fazendo propaganda da loja, e ele me pagava, me dava algum dinheiro para eu comprar manteiguinha, que eu amava. Mamãe saía de lá comigo e a gente ia para a Costa Pereira, havia um bar onde a gente tomava café com leite e manteiguinha.

Dez anos depois eu fui para o teatro, em 1977, quando conheci Milson Henriques. Através dele eu comecei a fazer teatro. Também com essa bagagem que eu tinha do meu bisavô, que eu ainda não sabia tanto, fui entendendo a relação musical com o congo, que eu tinha uma tendência a dançar e um ouvido pensante, e isso foi me dando caminhos. Eu entrei no teatro e a primeira apresentação que fiz foi de teatro infantil, com o espetáculo “Show de Sorrisos”. Amylton de Almeida, que era o nosso crítico de arte, assistiu, e saiu no jornal no outro dia falando que a melhor construção de personagem era a minha, então eu já entro tendo a fé para poder dar continuidade.

Dali, eu migro para a dança em 1986, conheço Magno Godoy na rua e Marcelo Ferreira e começo a fazer dança. Antes disso, fui chamado para trabalhar com Denise Marques. Em torno de 1981, nós fomos para a Bahia, e eu tive a sorte de ver pela primeira vez o Ismael Ivo. Na época, nós tínhamos um espetáculo sobre São Mateus e fomos apresentar no Teatro Castro Alves. Também tive sorte de ter tido aula com Klauss Vianna; e foi a primeira vez que eu vi Butoh e eu fiquei impressionado. E em 1986, com essa bagagem, eu fui para o Neo-Iaô, a gente acaba fundando a primeira companhia que trabalhava dança contemporânea aqui, e eu fui adentrando esse universo.

 

P: Qual foi a importância do Neo-Iaô para você?

 

A importância do Neo-Iaô é porque era uma escola, na verdade. Todos os dias da semana nós estudávamos e sábado, por exemplo, a gente ia para o cinema ver tudo o que era possível. Magno era ligado a cineclube, a Claudino, Margarete Taqueti, pessoas que introduziam cultura na cidade, e a gente estava nesse lugar porque a companhia foi tomando espaço e desenvolvendo essa ideia de contemporaneidade. Então nós tivemos oportunidade de fazer Butoh, o que era bem diferente aqui porque não tínhamos outros acessos, tivemos que viajar para São Paulo (eu já tinha tido a sorte de ver em 80). A gente também fazia Ballet Clássico Russo, tudo o que a gente não tinha... Magno viajava para São Paulo para fazer aula lá com o Bolshoi, voltava e fazia aula com a gente. Então tínhamos aula de dança, de ballet, de Butoh, um dia a gente ia ao cinema, em outro dia a gente fazia só estudos literários, poesia. A gente também permeava a relação da psicanálise com a dança.

A gente viajou pelo Brasil, fomos aos melhores palcos de teatro, trabalhamos com gente importante, como Jocy de Oliveira, Abujamra, Ayrton Pinto, fomos para o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e viramos uma referência no estado, porque até então não tinha um trabalho de dança contemporânea, tinha moderna, mas não contemporânea. Então essa ideia de investigação minha não veio só da minha ancestralidade (essa busca de identidade afro-capixaba), mas também desse processo dessa escola, que foi muito importante e que me deu noção de estética, de luz, de conceito, de percepção.

 

P: Você converge várias linguagens, como um caldeirão que compõe a sua trajetória na dança, até mesmo depois de sair do Neo-Iaô, não é?

 

Foto: Jöel Pöitzer

Exatamente, e foi quando eu me toquei disso... Eu já tinha feito cinema, em 1987, eu fui convidado para fazer um personagem num filme alemão. Eu era “policênico”, como sempre fui, multimídia, tinha feito cinema, jazz, cartazes, fotografia... Passei por várias áreas das artes, fui desenvolvendo a ideia de estética, preparação corporal, vocal, interpretação, literatura...

Em 1990, eu percebo que não existia nada muito profundo, ou algo a mais, sobre a cultura e a identidade afro-capixaba, aí eu saio do Neo-Iaô já com um currículo, um material histórico, e vou começar a desenvolver o meu trabalho solo até 2000, quando eu monto minha Companhia Enki.

 

P: Como surge a Companhia Enki?

 

Na verdade, a companhia surgiu porque eu entendi a necessidade do Espírito Santo de ter um trabalho sobre a questão negra e de me entender também como humano. A palavra Enki é a junção de dois sentidos: “En” quer dizer céu, e “ki” quer dizer terra; inclusive, independentemente de ser uma palavra someliana, até em japonês quer dizer terra. E eu falo que o homem é um intercessor entre esses dois espaços.

Eu comecei a estudar povos antigos, porque entendi que no ballet a gente não estuda a respiração; a gente tem postura, mas não sabe respirar (tem intuitivamente, mas não há aula de métodos respiratórios, uma das coisas que me incomodavam muito na dança). Eu queria alguma coisa inteira, não fragmentada. E então crio essa imersão para entender, em particular, a questão respiratória, aí comecei a estudar Mudras, dança indiana, Kathakali, para trabalhar essa gestualidade dentro da minha relação identitária. Então eu fui para fora de mim buscar todas as referências possíveis, japonesas, kabuki, tudo, para trazê-las e dar essa espessura da minha corporalidade, que já existia na infância, mas eu tive que estudar esse corpo para compreender todo esse manancial.

 

P: E você acha que esses atravessamentos, essas pesquisas acabaram por constituir uma estética particular, própria?

 

Eu acho que esses atravessamentos me fizeram perceber, primeiramente, que a dança é uma das expressões artísticas mais complexas. Eu, hoje, entendo que sou um cientista, não sou um bailarino, porque, na verdade, consigo pensar que a dança é uma matemática, meu corpo é projetado no espaço e no tempo e meu gesto vai desenhar nesse espaço, escrever no espaço, essa carga existencial vai ser traduzida através do gesto, o gesto é símbolo e código de interpretação do que eu vejo e entendo do mundo. Isso para mim é uma ciência, é a ciência da interpretação.

Eu consegui criar uma estética própria, fazer uma pesquisa para dar densidade ao que eu falava, por isso que quando eu fui para a França, para mim foi um choque, porque era interessante essa aproximação, essa troca com outra cultura; e eu me lembro muito de uma professora que virou para mim e falou “você realmente é artista, você fala o que você faz”, aí eu comecei a entender como era complexo falar daquilo que eu faço.

 

P: Particularmente a sua inteligência e a sua curiosidade foram te direcionando...

 

Eu também acho, fui projetado, eu fui jogado. A minha ancestralidade, hoje, depois da transcendência da minha mãe (eu estou chamando assim), me deu mais percepções para entender, por exemplo, a cultura africana, em especial a cultura Bantu, que é um percentual muito grande do Espírito Santo e que é também a origem do meu bisavô, que trouxe o Congo, então eu já era algo, eu descobri que existe uma pérola, uma joia dentro de mim e eu fui desenvolvendo. E graças à minha mãe, porque eu tinha um outro mundo, eu ia para a escola e chegava em casa e tinha um tipo de aprendizado conversando com a minha mãe. Ela dizia alguma palavra que eu não conhecia – por exemplo, “mondongo”; o que é mondongo? Ia perguntar para a professora, mas não era ali que eu encontraria resposta...

 

P: Sua mãe, a dona Laura Felizardo, foi uma griô?

 

Foto: Luiz Carlos Cardoso
Minha mãe era uma griô. Particularmente, sim, porque ela sempre me trazia coisas, por exemplo, o trabalho que a gente está fazendo agora, chamado “Palavras Invisíveis”, é exatamente sobre esses termos que ela falava e que eram de origem Bantu. Eu recorto essas palavras, essas letras, monto o figurino para fazer uma performance na água, porque é o mar que vai fazer essa transição África-Brasil, e particularmente o Espírito Santo. Então eu vou nas minhas origens, atravesso o oceano para trazer a minha identidade e esses elementos que aparentemente estavam soltos. Na saia, eu repito as letras, as palavras que ela falava, por exemplo “marimba”, que é um instrumento, mas também é um brinquedo, para mim é até uma arma, uma pedra que era amarrada a uma corda para tirar pipa do fio.

 

P: Seu trabalho parte de muitas conexões, né?


Meu trabalho é conceitual, o elemento fala; não tem como desassociar a ideia do meu corpo nem meu corpo do elemento. Eu entendo que o corpo é o lugar das ocorrências; o que não perpassa pelo meu corpo? Não só a química, a biologia, mas pensar, escrever, o que é escrever? É a interpretação de códigos, de elementos? A mão seria um instrumento de escoação desse pensar, como esse pensar vai retratar através de símbolos que a gente diz hoje que é escrita. E aí eu fico pensando, por exemplo, que esses rabiscos, essa descrição corporal, esses gestos, também são escritas; como eu posso pensar a origem da escrita no mundo?

Foto: José Luiz Monteiro 
Eu comecei a entender que, da mesma forma que esse movimento ondulado simboliza a água, na religiosidade, no Candomblé, por exemplo, você tem a ideia de ondulação, de água, na própria ideia da africanidade. Então entender, por exemplo, a questão das religiosidades, dos elementos da natureza como continuidade desse corpo, para mim, é o mais sagrado, e entender que a origem da dança está ligada à religiosidade; religião significa religar, voltar aos princípios, e a dança para mim é um princípio de conhecimento, é uma conexão mesmo.

Eu acho que essas conexões e imersões que fui fazendo foram elementos para eu entender a minha africanidade, a minha ideia estética e o que eu posso fazer com isso.


P: Trata-se também de um processo de autoconhecimento?

 

Sim. Quando eu descubro o termo Bantu, por exemplo, que é um dos grupos étnicos mais importantes de toda a região sudeste Saariana, eu não sabia que eu era tão antigo. Eu tinha um grande problema na infância, eu abria os livros de História e via o egípcio e ficava incomodado, porque eu me via parecido, mas eu não sabia como eu poderia estar ali no livro e estar aqui no Espírito Santo, eu não entendia! E eu não entenderia isso na escola porque era muito raso o que estava escrito ali. Depois eu fui entender meu perfil, minha estrutura craniana, meu olho puxado... Mas foi muito duro, porque eu não tinha esses elementos na minha mão com tanta facilidade.

É muito complexo, porque a colonização é muito bem-estruturada, então, para entender um negro no Brasil, com todo o processo dessa memória da escravidão, diaspórica, é muito mais complexo. Eu me vejo hoje meio que um vencedor. Eu tive a percepção de ir para um caminho, mesmo que intuitivamente, consegui colher esses frutos, isso graças à minha ancestralidade e, em particular, à minha mãe. Minha mãe, por exemplo, eu sempre quis (e consegui) que ela adentrasse um teatro. Ela foi, entrou em cena. Eu faço minha mãe (eu) voltar, porque é a ideia de retorno, de ancestralidade, eu perpasso pelo útero e vou para as minhas origens. E trago ela para dentro do teatro, a cena é linda, de “Corpo Atlântico”, de 2018/19.

 

P: Dona Laura chegava a intervir nas suas criações?

 

Ela me auxiliava no sentido de pegar esses elementos e pensar como ressignificá-los, de falar dessa dor sem essa angústia. Minha mãe tinha Alzheimer; eu tive um trabalho de trazê-la para um processo de cura, então eu brincava com ela, ao mesmo tempo em que eu a vestia, porque isso era a memória da mãe dela; levava para o cinema, para festa, meus amigos adoravam mamãe, falavam “que gracinha...”, e eu achava tão natural essa jovialidade dela! Eu falo que ela virou uma estrela, porque, de repente, aparece um poema sobre minha mãe lá no Paraná... Isso também me ajudou a entender a saída dela, senão eu piraria. Se eu não tivesse tido essas percepções, eu estaria, sinceramente, louco. A gente era carne e unha.

Aí você começa a ver a estética, a busca identitária, a relação do afeto com transformação social, de como ela era partícipe, ela não tinha idade para mim, eu a chamava de “bonita”, porque eu sabia que isso era autoestima, e ela brincava, ia na onda, adorava falar com jovens; eu falava “vamos passear!”, ela não queria nem saber para onde, ela ia. Ela tinha essa percepção também, acho que é uma coisa de não morte, a força que ela tinha de estar sempre colorida, de não ter idade, não tinha esse preconceito, e isso foi importante não só para mim, mas para outras pessoas. Era um tipo de amor que a minha mãe tinha que se propagava, e ficou instaurado no coração das pessoas. Isso é processo de arte, a arte cura mesmo.

 

P: Na sua visão, como sua trajetória artística afeta também o nosso entorno como sociedade?

 

Se eu vivi 40 anos e nunca ouvi esse termo Bantu... num país desse, num país desse no século XXI... sinceramente, eu cumpro o papel da saga do herói. Sem nenhuma pretensão, sem nenhuma cena, eu não sou estrela, mas eu acho que é um grande tesouro particularmente para a questão negra do Brasil, eu faço parte de uma cartografia, meu trabalho faz parte de uma cartografia desse corpo afro-brasileiro, que é complexo demais. Por exemplo, a gente não consegue traduzir às claras, vamos dizer assim; a palavra “candomblé” tem muito mais a ver com a identidade capixaba do que com a baiana, é mais Bantu, que é um percentual muito maior, de 63,3% do Espírito Santo, do que na Bahia, que é de outro grupo étnico, nigeriano.

Então a gente começa a perceber essas nuances e começa a entender esse corpo instalado nesse estado. Como que eu, Paulo, como que a arte me permitiu, me instrumentalizou como um cirurgião, um médico... eu sou inclusive um dos primeiros a receber o Notório Saber Cultural exatamente por essa pesquisa. Então, quando eu recebi aquela crítica da França (“dançarino das profundezas do simbolismo afro-brasileiro”), eu entendi que isso era muito maior, mais abrangente, para além da minha geografia e da geografia de onde eu moro; e ela vai se propagando, há pouco tempo soube que tinha material meu em uma biblioteca em Nova York.

 

P: Sua pesquisa também dialoga com o Afrofuturismo?

 

Muito. Tem uma foto do “Acqua” de quando eu pego uma bacia e a coloco na cabeça, que é exatamente essa visão do Afrofuturismo. Essa bacia vira uma parte do corpo, onde a gente toma banho e fala de ancestralidade. O intérprete começa abaixado e as duas bacias estão uma sobre a outra, com ele dentro da bacia e a outra na cabeça dele, e quando começa com a luz e o som de água borbulhando, a luz azul refrata e vira um negócio parecido com um disco voador! Então eu acabo não sendo só o bailarino, eu tenho que estar envolvido com a cena, com a estética, com a luz, o figurino...

O Butoh tem muito disso de olhar para dentro, da vida e da morte, do minimalismo, do nada, da ausência, de uma certa negação, eu acho que tem muito a ver com a questão africana e por isso eu acho que eu trago no Butoh uma relação com a minha identidade. Porque é uma ausência cultural, uma lacuna, que essa expressão Bantu vem preencher. Resgatar isso tem a ver com o Afrofuturismo, para refletir dentro da arqueologia, da biologia, discutir a questão racial, discutir a questão tecnológica, a visão de ciência e conhecimentos e saberes ancestrais, com a visão africana dialogando com outras culturas, com etimologia, com etnologia.

 

P: Quais foram os seus trabalhos mais recentes durante a pandemia?

 

Foi uma performance que eu estava fazendo ontem [risos], montei um espaço aqui e enchi de areia. O nome do trabalho é “Ori.gens”. Por causa das origens, mas eu falo da cabeça. Em Yorubá, “Ori” é cabeça, e essa “gens”, essa genética, da onde viria esse pensar para estruturar o que é humano, o que é pensar.

 

P: E antes da pandemia, um dos últimos espetáculos que você apresentou foi o “Epopeia de Gilgamesh”. Apesar de ter sido montado em 2016, ele dialoga com o atual momento?

 

“Epopeia de Gilgamesh” é muito contemporâneo, muito forte em relação a esse momento pelo qual a gente está passando, da não compreensão dos governantes, desse distanciamento de coisas a que a gente tardiamente vai ter acesso; e agora com esse excesso de tecnologia, a gente está exaurido e não tem muito para onde ir, nesse isolamento, e até de nós mesmos, porque eu acho que o futuro é voltar para trás, é ir ao encontro da linha de retorno, de voltar para as origens. Quem não tiver essa “sacação” ficará muito mais fragilizado. Aí penso a arte como uma possibilidade de transformação mundial mesmo. Acho que a maior moeda do século XXI é o conhecimento. E essa ideia de trabalho com a ancestralidade é a ideia de preservação do futuro.

 

P: Dançar, para você, é um encontro com a ciência? E o que mais além disso?

 

Total. É muito além, também é um “religare”. A dança é uma projeção no espaço, é uma intervenção, esse corpo está projetado na casa, que tem a ver com arquitetura, então nós somos o arquiteto, nós estamos rearquitetando esse espaço. Eu acho que é muito mais que ciência, sim. Acho também outra coisa, o corpo africano é uma instalação, ele se coloca perante a natureza, ele se pinta de branco (o que não tem nada a ver com raça), no sentido de adentrar a natureza. Essas poéticas mínimas de trazer milhões de potências e inter-relações. Acho que estão sempre muito integradas arte, ciência, antropologia, sociologia. São vários níveis e estágios e é o tempo todo essa ressignificação. Nada está separado e a gente estuda tudo separado, esse é o grande problema.




sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Inscrições abertas para o Festival Danç@ in Casa

 

Já pensou em apreciar um Festival de Dança sem sair de casa? Sem precisar se colocar em risco de infecção pelo CoronaVírus? O Festival Danç@ in Casa oferece aos moradores do Espírito Santo e principalmente de Cariacica, a possibilidade de apreciar um festival de dança sem sair de casa. As inscrições para o festival estão abertas até 15 de setembro. 

Festival premiará ganhadores com bolsa de estudos. Foto: Bárbara Caldeiras.


A pandemia que vivemos obrigou a população a adotar medidas de distanciamento social que afastaram a população de diversas atividades culturais. Isso gerou um grande impacto psicológico para a sociedade, muitas pessoas perderam seu espaço de manifestação onde costumavam externar suas emoções, explorar a criatividade e até mesmo aliviar a tensão do dia a dia. 


Foi refletindo sobre essa problemática que surgiu o “I Festival de dança – Danc@ in Casa”, que tem proporcionado alternativas para que os dançarinos, alunos e amantes da dança do município de Cariacica possam se expressar participando como protagonistas de uma competição de dança online. Os vencedores serão escolhidos por voto popular, dando ainda mais acesso e visibilidade a todos participantes.


As três coreografias mais votadas de cada modalidade/categoria poderão ganhar bolsas para aulas técnicas de dança na Expressão e Arte Studio de Dança ou Coachs coreográficos particulares, de acordo com a modalidade escolhida. Além disso, os primeiros lugares também participarão de uma gravação profissional de dança para o Youtube.


O festival é realizado com recursos financeiros da prefeitura de Cariacica, oriundos da Lei João Bananeira de Incentivo à Cultura.


SERVIÇO

I Festival de dança - Danç@ in Casa 

Gratuito 

Inscrições abertas até 15 de setembro

Informações e regulamento em  https://linktr.ee/dancaincasa