Mulher preta, capixaba, nascida
em São Torquato, na periferia de Vila Velha, umbandista, lésbica, ativista do
movimento de lésbicas Santa Sapataria, professora de Educação Física e de
várias temáticas relacionadas à educação das relações raciais, à questão de
gênero, de diversidade social. Assim se apresenta Ariane Meireles, que acredita
que se tornou quem é por causa da dança. “Até conhecer a dança, eu não me
identificava com nenhuma dessas características que eu descrevi agora. Antes da
dança, eu era uma menina preta com muita vergonha do pertencimento racial, uma
menina que queria muito ser branca, ter cabelos lisos, que queria ser aceita e
querida. A partir da dança eu comecei a traçar essas identidades que hoje me
conformam”, acrescenta. Entre as inúmeras contribuições que Ariane trouxe para
a dança no Espírito Santo, está a formação e o desenvolvimento do grupo de
dança Afro-Brasileira Cênica que completa 30 anos de atividade e luta neste
ano, o NegraÔ – do qual é uma das fundadoras –, e que sempre associou a dança à
pesquisa, ao bate-papo em roda e ao ensino. Confira a seguir a entrevista que a
dançarina concedeu ao Portal Dança no ES!
P: Quais são suas primeiras memórias em relação à dança?
Por falar em memória, esse é um valor civilizatório
afro-brasileiro muito importante, e a minha memória falha muito! Mas, como a
dança para mim é tão vital, acho que memória de dança está mais presente do que
outras coisas.
Eu não tenho noção de quando foi que eu comecei a pensar que
eu poderia dançar na vida. Eu era uma criança muito tímida, envergonhada, não
tinha coragem para nada, muito menos achava que tinha talento para alguma
coisa; e isso por causa do racismo – tenho que frisar bastante. O racismo da
escola, da rua, da sociedade em geral. Só tinha o acolhimento e o encorajamento
em casa (e isso é muita coisa!). Então minha mãe, dona Adélia Celestino
Meireles, minha ancestral hoje, desde que eu era criança, me perguntava o que
eu queria fazer artisticamente, apesar de ela ser uma mulher de periferia,
pobre, sem estudos. Ela tinha uma mentalidade, uma condição na vida, muito
vanguardista para a época dela e para o tipo de mulher que ela era!
Aí eu tentei alguma coisa quando era criança, inclusive
música, tocar instrumento, não dava nada certo. Eu tinha cantado em igreja
evangélica, na época, e quando eu olhava o pastor falando naquele espaço que
parecia um palco, eu só via dança, eu tenho essa memória hoje, mas eu não sabia
que eu poderia estar naquele “palco” também; então acho que foi na adolescência
que eu tive coragem de começar a pensar nisso com mais seriedade.
E foi em uma situação bacana, de um amigo meu, pianista,
Sérgio Lopes, um rapaz branco que tinha 14 anos, e eu também tinha. Ele estava
sendo pianista da academia de dança da dona Lenira Borges, na Praia do Canto. Ele
pobre, eu também, mas como ele era da igreja, tinha estudado instrumentos
musicais e, quando ele chegou lá, viu um professor dando aula de dança com tambores,
ele achou aquilo lindo e me disse para eu ir lá na escola. Eu fui com ele, com
muita vergonha. E eu vi a dança afro pela primeira vez na vida, com o professor
Raimundo Netto. Aquilo me impressionou tanto, que eu nunca mais parei de
dançar.
P: Como foi o início da sua trajetória na dança afro-brasileira?
Como isso foi ganhando importância na sua vida?
Eu comecei a dançar com Raimundo Netto, ele gostava de me
ver dançando, apesar da minha vergonha, porque nunca gostei de ficar à frente
de nada, e o Raimundo fazia muita questão de me projetar. Ele trabalhava com Mercedes
Baptista. Eu não a conhecia, mas eu estava com o Raimundo, que estava com ela
em sua vida artística. Ele achava que eu tinha um talento muito especial, e nós
montamos um grupo de dança afro nessa ocasião da escola Lenira Borges; havia eu
mais uma bailarina preta, Merliane de Almeida, que fazia ballet clássico, esse
meu amigo pianista, Sérgio Lopes, que havia sido convidado por ele, e um outro
rapaz chamado Marcos Colodetti. E formamos um grupo chamado Axé de Obá, para
mim, o primeiro grupo de dança afro daqui do estado, porque não conheço outro
antes disso, não, nos anos 80.
E o Raimundo nos levou para conhecer a dona Mercedes
Baptista, no Rio de Janeiro, e eu tive o privilégio de ter muita aula com ela
por causa dessas viagens. E nessas aulas com ela, eu nem sabia a dimensão
daquilo, o que significava estar diante de uma mulher tão poderosa, mas eu
percebia que ela era muito especial mesmo, porque era rigorosa, linda,
exuberante, tudo de bom, e já era uma senhora, acho que ela tinha a idade que
eu tenho hoje, 55 anos (eu também sou uma senhora, mas hoje eu não acho... [risos]).
E quando a gente começou a estudar com ela, a falar de Orixás e tudo, eu olhava
para ela e pensava “essa mulher se parece com um Orixá”. Eu a via como algo
além da normalidade, além do que é natural para mim, porque era muito poder
numa mulher só.
Nós fizemos muitas apresentações no Rio de Janeiro, em
clubes, em escolas, em vários lugares, e aqui também, em Vitória. Esse grupo
era formado para fazer apresentação cultural, não era um grupo de pesquisa ou
de estudos, era um grupo de dança para se apresentar, isso me inquietou ao
longo do tempo, mas no começo era fascinante, porque a gente ganhava um dinheirinho
também.
P: Você começou a ver isso como uma espécie de
profissionalização?
Sim, mas ao mesmo tempo me incomodava estar em um grupo que
tinha a ocupação de apresentação. Eu queria mais daquilo, mas não sabia bem o
que queria, porque, como eu falei, foi a dança que me tirou desse lugar de
menina “menor”, daquela que não tem orgulho do pertencimento, então eu achava
que a dança deveria também fazer isso com outras pessoas, como fez comigo; e
como a gente só tinha o foco em apresentações culturais para receber cachê, eu
comecei a achar que isso não era suficiente para mim.
Eu nunca tive um olhar muito empreendedor, no sentido de
receber dinheiro com a dança, eu sempre achei que a dança poderia ser algo
paralelo à minha profissão, que eu ia escolher ainda qual seria. Talvez a minha
mãe me estimulasse a pensar assim porque achava que artista no Brasil não
ganhava dinheiro, e ela dizia “você tem que ter a dança na sua vida, mas tem
que ter uma profissão”, e esse “mas tem que ter uma profissão” entrou para mim
como se a dança não pudesse ser uma profissão.
P: Em que momento a dança passa a se conectar mais
profundamente com o debate racial na sua trajetória?
Com essa inquietação, quando eu percebi que esse grupo
estava começando a me deixar menos satisfeita com o que eu gostaria de fazer,
ainda que eu não soubesse bem o que eu gostaria de fazer, eu tive, nessa
oportunidade, uma aproximação com o movimento negro local, com o Centro de
Estudos da Cultura Negra – CECUN, que tem como coordenador o Luiz Carlos
Oliveira. Então eu entrei ali novinha, com 16, 17 anos, já dançava no grupo Axé
de Obá, e eu comecei a conhecer pessoas que tinham a questão racial como meta
na vida – foi a primeira vez que eu vi um homem preto como professor da
universidade, o Cleber Maciel. Ele me inspirou e inspirou muitas pessoas da
nossa geração, era professor de História da Ufes.
Quando eu me aproximei, ele falou “você pode fazer da dança
afro sua militância política”, era tudo o que eu queria na minha vida! Então,
quando ele disse isso, a gente foi juntando uma pessoa aqui, outra ali,
juntamos um bom grupo e fizemos um segundo grupo, o Abi Dudu. Nós, o coletivo
que se fez ali, escolhemos o nome para esse grupo, que tem o sentido de “nascer
negro”. Isso porque o professor Cleber colocou nas nossas mãos um dicionário de
Yorubá – a gente nem sabia o que era Yorubá, não tinha internet nessa época –, ele
colocou nas nossas mãos muitos livros e nos ensinou a fazer pesquisa, nós
formamos o primeiro grupo de dança e pesquisa sobre a cultura afro-brasileira,
que foi o Abi Dudu; esse grupo durou alguns anos.
Nós conseguimos vários espaços para ensaiar gratuitamente;
nós não tínhamos, por exemplo, a Fafi funcionando nem outros espaços... Existia
um sindicato na Praça Oito, o pessoal dava a chave para a gente ensaiar lá à
noite, a gente arredava as mesas e cadeiras e dançava, dançava, dançava...
depois largava tudo arrumadinho de novo para eles trabalharem no outro dia. A
gente começou a conhecer muitas pessoas do movimento negro que nos levavam para
outros espaços para ensaiar, e foi aí que nós fomos para o Museu Capixaba do
Negro, quando era um barracão, praticamente. Aí já com o NegraÔ (que surgiu um
ano após a dissolução do Abi Dudu).
P: Vocês chegaram a transformar a importância do espaço do
Mucane, né?
Sim, a gente decidiu ocupar o Museu Capixaba do Negro,
porque essa era uma determinação do movimento negro local, ocupar o máximo possível
para que a gente tivesse hoje o que nós temos, que é o Museu, porque dependia
de a gente provar que tinha uma utilidade para nós e que tinha uma importância
na nossa história. Então todos os sábados e algumas vezes durante a semana a
gente ia para lá, limpava tudo, cada um levava da sua própria casa um balde,
uma vassoura, um pano de chão, a gente limpava, fazia uma faxina gigante para
receber as pessoas e às vezes havia 100 pessoas numa sala fazendo aula de
dança, a gente se revezava inclusive nessas aulas de dança.
E era muito bacana que, apesar de não ter internet, a gente
tinha amigos que viajavam para Bahia, Rio de Janeiro e compravam discos e davam
para a gente, porque eles tinham acesso ao Olodum, ao Ilê Aiyê, a pessoas como
Naná Vasconcelos, e traziam os discos delas. Nas nossas aulas, havia pessoas
que tinham alto poder aquisitivo, muitas médicas, advogadas, e também as garis,
as trabalhadoras domésticas, as donas de casa com suas crianças, então esse
povo todo frequentava junto. Só que não existia nem um dia de dança sem uma
roda de conversa sobre a questão racial, isso para nós era fundamental, uma
coisa não estava descolada da outra nunca, nem no Abi Dudu, nem no NegraÔ.
P: Como surgiu o NegraÔ?
Estávamos na sala de dança da Ufes, do curso de Educação Física,
eu, Renato Santos, Ana Cecília Macedo e Walter Lima. Nós quatro éramos
estudantes de Educação Física da Ufes, nós quatro pretos, nos encontrávamos
sempre; isso em 1991, e o Renato, sempre muito ativo, muito atento às coisas da
sociedade, da cidade, recebeu um convite para fazer uma coreografia para um
evento, e nós concordamos com o Renato e fomos fazer a tal coreografia e dançar.
Só que, para isso, a gente teve que apresentar alguma coisa como grupo, e aí
vimos que tinham dois homens e duas mulheres pretas, pensamos em Pretoá,
Pretaô, aí ficou NegraÔ, porque as mulheres sempre vêm na frente mandando na
coisa toda. Então Negra é disso, e Ô é dos homens, do masculino. NegraÔ vem
daí, dessa atividade que a gente pensou ser uma atividade única de ir lá
dançar, ganhar o cachê e tchau, mas não, está aí até hoje, e o Renato é o
grande mentor dessa história inicial.
P: Como você percebe, olhando daquela época para hoje, o
cenário da dança no estado, como vocês foram responsáveis por abrir portas e ir
modificando inclusive a estrutura de ensino da dança?
O NegraÔ, quando ele começa a fazer alguma história, recebe
também um pouco de resistência de quem considerava que o que a gente fazia não
era dança contemporânea, que aquilo ali era folclore, era qualquer coisa menos
digna de ser considerada dança, e muitas pessoas brancas da dança capixaba, do
nosso cenário, foram muito cruéis com o NegraÔ durante muito tempo. Eu lembro,
acho que foi em 95, que nós nos inscrevemos várias vezes para poder fazer prova
no sindicato dos artistas para profissionalização da dança afro,
reivindicávamos isso com muita frequência e éramos tratados como qualquer
coisa, menos como dançarinos. Eu tenho essa memória e um pouquinho de mágoa
disso, mas nada que me afete a saúde.
Eu já era uma profissional da dança afro, porque, quando eu
era adolescente, em uma ida ao Rio de Janeiro, o Raimundo Netto nos levou para
fazer uma prova de profissionalização, então eu me tornei profissional com a
professora Mercedes Baptista me dando a prova, ela que era a professora que
aplicou a prova, muito rigorosa, éramos nós 4 e só eu consegui a aprovação,
então eu sou filiada ao Sindicato dos Artistas do Rio de Janeiro porque foi lá
que eu fiz a prova, aqui não tinha. Nós tentávamos aqui e era um fracasso.
E eu lembro que uma vez nos inscrevemos num concurso de
dança contemporânea no México, o NegraÔ se inscreveu e fomos selecionados, e aí
foi tipo... “olha, galerazinha racista de Vitória, presta atenção que o
exterior já está reconhecendo a gente como grupo de dança contemporânea, mas
aqui não”; não ganhamos nada no festival, mas ganhamos uma experiência linda de
ter ido para lá. Foi muito importante para nós, até para nos firmamos como
grupo de dança mesmo.
Então o fato de a gente ter passado por essas humilhações
todas com o sindicato dos artistas, especialmente o pessoal da dança, o povo
branco da dança capixaba, nos levou a ter mais amplitude das nossas ações,
porque o grupo estava querendo se tornar profissional. Não sei qual foi o ano
que teve a primeira prova de dança afro para profissionalização, mas aconteceu.
Eu sei que o NegraÔ tem uma história de mudar paradigmas
aqui na nossa cidade, isso é um orgulho muito grande; de uma coisa de início
tão despretensioso, a gente conseguiu abrir caminhos e formar pessoas que são
fenomenais, e eu digo isso com a boca bem cheia, porque conhecendo grupos de
dança de outros países, de outros estados, eu reconheço a qualidade de pessoas
que estão no NegraÔ hoje e das que já estiveram, que estão fazendo história em
muitos lugares até do mundo. Para mim é uma honra, um prazer muito grande.
Depois de um certo tempo, eu decidi que eu não queria mais
dançar em palco... eu já tinha feito muito isso, era como se eu estivesse
olhando um pouquinho de longe e pensasse “missão cumprida! Deixa a galera tocar
o barco”. Isso é uma coisa muito específica da minha personalidade, eu acho.
Assim como no movimento de lésbicas também, eu levei, levei, levei... quando vi
que tinha a meninada chegando, eu falei “opa, bora recuar, ler uns livros
dentro de casa, ver televisão, porque agora tem uma galera que faz”.
P: Você vai abrindo o caminho e depois deixa a galera
continuar...
É, e fizeram isso comigo também! Pavimentaram o caminho para
eu entrar. A dona Mercedes veio, a minha mãe também, aí eu acho que faço o
mesmo papel, e as pessoas vão brotando.
Aliás, eu falei muito do Raimundo Netto e do Cleber Maciel,
mas não posso deixar de falar do Gil Mendes. O Gil é o cara que ensinou para mim
tudo o que eu sei de dança. Obviamente que eu aprendi muito com a Mercedes
Baptista, com o Raimundo Netto, e o Gil foi quem me consolidou enquanto
profissional, enquanto professora e bailarina de dança afro; é o cara que me
ensinou com toda delicadeza, doçura, profissionalismo o que é dançar
profissionalmente. Então, mesmo que eu tenha recebido um documento de
profissional lá pelos meus 17 anos, porque eu tinha uma boa performance, eu não
sabia o que fazer com aquilo, e o Gil me ensinou a saber o que fazer com
aquilo, a saber não só a dançar lindamente nos palcos, mas saber transmitir
isso de forma muito profissional. Gil, então, para mim, é o cara que é o máximo
dos máximos, eu o reverencio muito e tenho ele como meu grande mestre, junto
com essas duas pessoas que eu falei também aqui.
P: E o grupo Griôs da Dança, como surgiu?
É o mesmo movimento desde sempre. Assim como eu me afastei
do NegraÔ porque achava que estava na hora de a galera tomar a frente, eu
comecei a achar “já deu pra mim de dança”. E eu tenho uma amiga que me falou
assim “você nunca deve parar de dançar, porque a dança é a sua vida”; eu disse
que estava muito cansada, a dança também é muito murro em ponta de faca, e ela
disse “tá bom, mas que seja na sua sala, na sua casa, dance!”. E eu tenho isso
muito gravado na memória, porque todas as vezes que eu pensei “já deu pra mim
de dança” eu precisei dançar para continuar respirando, a verdade é essa! Então
a dança, nesse sentido, me faz um bem danado.
E aí uma foi puxando a outra e começamos lá no Mucane, em 2014, e fizemos esse grupo que está presente ainda. É um grupo que tem a perspectiva mesmo de se reunir, de falar de histórias de mulheres brasileiras, mulheres de outros países, de contar histórias de pessoas simples como nós, da nossa comunidade, como também de grandes artistas, grandes mulheres da política, da ciência, então as mulheres sempre estiveram muito presentes nas Griôs da Dança, não só na nossa roda de conversa, mas também nas músicas. É um grupo bastante forte, com uma perspectiva muito grande de que, quando a pandemia estiver acabado, a gente possa se encontrar novamente.
P: Na sua perspectiva, dançar é um ato político?
Dançar é um ato político. É revolucionário, é fazer do
próprio corpo, de si mesma, algo que é para além do que o olhar do outro percebe,
é se sentir livre, é se sentir em paz, é se sentir feliz, é se sentir vivo;
para mim, dançar é um ato político, muito político, e eu acho muito bacana
pensar que a dança não está restrita à juventude, então, como eu comecei essa
história falando que eu tinha 13, 14 anos, eu tenho 55 e eu quero que isso se
prolongue por, pelo menos, até meus 92 anos.