Artista, educadora e pesquisadora na área da dança, Eluza Maria Santos é ligada às artes desde pequena. Os primeiros passos que deu quando começou a andar foram acompanhados de ampla movimentação corporal, diante dos familiares reunidos em um jantar. Na vida profissional, seus passos a levaram ainda mais longe, para além das fronteiras territoriais – cursou mestrado e doutorado nos Estados Unidos, país que também abraça parte de sua trajetória artística. Fundadora e codiretora do Projeto EluzArtes, em Vitória (ES), Eluza carrega, ainda, um apanhado de títulos, de licenciada em Educação Física pela Universidade do Espírito Santo a Ph.D. em Dança e Artes Afins pela Texas Woman’s University, com outros mais nesse intervalo. Amante de todas as linguagens artísticas e com mais de meio século de dedicação à dança, Eluza inspira vitalidade em tudo o que faz. Conhecida por sua intensa energia e proatividade, nossa entrevistada falou sobre os principais desafios de sua carreira e sobre os projetos que desenvolve junto ao seu grupo, no ano em que completa 64 anos de idade. Confira abaixo sua entrevista para o Portal Dança no ES!
P: Gostaria que você falasse um pouquinho sobre o começo da dança
na sua vida.
Eu acho que já nasci dançando... Eu tenho muita energia, gosto das
coisas alegres. Quando estava com 4 ou 5 anos de idade, eu entrava em todas as
coisinhas que apareciam na escola, teatrinho, dancinha etc. E, com uns 6 ou 7
anos, a mamãe viu que eu gostava e me colocou para fazer ballet, mas, olha só,
o ballet não passou a ser a minha afinidade, o código do ballet tem uma certa
rigidez e a minha personalidade prefere algo mais solto, então não deu muito
certo. Mas vivia envolvida nas festas de escola, criava com a meninada da vizinhança.
Até que veio o momento crucial, quando eu tinha 11 anos, estudava
na escola Maria Ortiz, no Centro de Vitória. Logo nas primeiras semanas de
aula, uma coleguinha falou “Eluza, você que gosta de dança, tem uma aula de
dança lá embaixo no porão, por que você não vai lá ver?”. Aí eu desci. O tal do
porão era uma sala linda de dança, com madeira, barra, espelho, um piano, uma
coisa linda, eu fiquei encantada porque a professora fazia o que eu queria
fazer, ela tocava o piano, ensinava, alegrava o pessoal. Essa pessoa passou a
ser para mim a luz da dança, ela foi a minha inspiração, o nome dela é
Conceição Aparecida Ferreira Vieira, que foi a minha mentora, e dali pra frente
fui embora. Depois de duas ou três semanas, eu estava dançando no grupo dela.
Passei a fazer ginástica rítmica, as equipes gostavam de mim, fui ginasta,
competi em nível nacional, e comecei a ir ao Rio de Janeiro fazer cursos, curso
de jazz, de afro-brasileiro, isso foi me expandindo.
P: Quando você sentiu que essa seria a sua carreira?
Foi na época do vestibular. Eu fui seguindo a Conceição, a minha
primeira professora. Ela era professora da Ufes e eu tinha falado para ela que
queria fazer dança, mas não havia faculdade, então fui fazer Educação Física. E,
na mesma época que eu entrei, um dos técnicos de ginástica que tinha me
conhecido antes e também era professor na universidade, Paulo Roberto Gomes de
Lima, me falou de uma escolinha de primeiro grau no Centro de Vitória que
estava precisando de uma professora para “área do movimento”, para dançar,
fazer joguinhos, e ele me indicou. Foi meu primeiro emprego, eu estava no
primeiro semestre da faculdade, com 17 anos. Quando os pais e mães assistiam à
aula, eles não sabiam quem era aluno e quem era professora! Eu sou muito
pequenininha, eu não tenho nem um metro e meio.
P: Durante esse período, como você buscou outras formas de
adquirir conhecimento e experiência na área dança?
Aparecia curso no Rio de Janeiro, eu ia fazer, Belo Horizonte, e
por aí foi... até que chegou a hora de eu fazer mestrado. Eu já tinha me
formado e já estava dando aula no Maria Ortiz, em escolas de dança particulares,
em academias, fiquei sócia de um dos proprietários. Até que a própria Conceição
trouxe dos Estados Unidos uma professora para dar aula, eu me encantei com o
curso, e essa professora, Ray Faulkner, gostou muito de mim. Em um dos jantares,
ela me perguntou se eu não gostaria de fazer mestrado nos Estados Unidos. Eu
arregalei os olhos. Ela disse “se um dia você quiser ir, me fala, que eu terei
o maior prazer em te ajudar, em te orientar”. Não deu outra. Passaram-se quase
três anos, juntei um dinheiro e fui para lá.
P: E como foi sua chegada nos Estados Unidos para cursar o
mestrado?
Eu saí daqui pensando que eu entraria direto no mestrado, só que, com o curso de Educação Física, eu teria que cursar ainda muitas disciplinas que não estavam no meu currículo para fazer mestrado em dança. Então essa mulher que me convidou sugeriu: “Por que você não faz as disciplinas para completar um curso de bacharelado em dança aqui, no Arizona State University”. Eu topei a parada. Aquilo ali me preparou para eu sair maravilhosamente bem no mestrado.
P: O que, para você, mudou ao retornar para o Brasil nessa época? A
experiência atravessou o seu modo de dançar, de se relacionar com a dança?
Eu sempre dancei Brasil, para falar a verdade, mas eu tinha o
maior prazer de dançar Brasil lá fora pra mostrar pro pessoal o que é isso
aqui. Quando eu voltei, eu dancei mais o Brasil de uma forma a questionar. Por
exemplo, me lembro de um trabalho que eu fiz chamado “Uma Certa História do
Brasil”, mostrando certos aspectos do Brasil que não são evidenciados na
história e por quê. Questionava a desigualdade social, isso foi em 1986/87, um
dos primeiros espetáculos que eu fiz. As minhas danças também começaram a
absorver uma certa divisão. Eu tinha dois mundos: o mundo americano e o mundo
brasileiro, coisas maravilhosas lá e coisas maravilhosas aqui, coisas ruins lá,
coisas ruins aqui, todo lugar é assim. Então comecei a dançar sobre essa divisão,
e assim foi com várias outras coisas.
P: Quais caminhos você seguiu após esse retorno? Deu sequência à
área acadêmica?
Depois que eu retornei do mestrado, dei aula por um ano em Minas
Gerais, na Universidade de Uberaba. De volta a Vitória, fiz o concurso para a
Ufes, no curso de Educação Física, entrei e fiquei como professora por um bom
tempo, até que chegou a década de 90 e eu falei “quer saber de uma coisa? Está
coçando de novo”. Eu nunca perdi o contato com os Estados Unidos, eu ia quase
todo ano. A companhia da Ufes que eu criei fez turnê e se apresentou lá, o
Grupo Axis. E ele viajou também para Joinvile não sei quantas vezes, dançamos
em são Paulo, Rio, Vitória, Estados Unidos.
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Foto: Steve Clarke |
E eu descobri que eu sou essa Eluza que sempre vai ser dividida,
meu marido é americano, tenho a família da parte dele lá, a minha aqui... mas
existe essa essência que eu carrego. O tronco da minha árvore vai fundo na
cultura brasileira, e as ramificações têm muito dos Estados Unidos e de outros
lugares também. Mas a árvore é a mesma, que está firmemente e profundamente
enraizada no Brasil. E hoje eu moro definitivamente aqui, foi onde eu escolhi
viver, depois de ter tido várias companhias.
P: Seu olhar como educadora foi também sendo formado por essas
experiências? O que é ensinar dança, para você?
Ensinar dança é algo maravilhoso. Numa aula de dança, está todo
mundo exposto, ninguém está escondido atrás de anotações sobre a aula ou de só
observar alguma coisa que está sendo projetada ou falada. Você vai se
movimentar, receber o movimento, ver o que vai fazer com ele, vai dar de
volta... é assim: recebe, dá de volta, recebe, dá de volta, é a vida! É onde
você vê o ser humano na sua vulnerabilidade. Então, para mim, dar aula de dança
é saber entender essa vulnerabilidade e saber lidar com todas as diferenças
nessa área, que eu chamo de vida. É importante entrar numa aula de dança
sabendo que ali é uma fatiazinha da vida de cada um que está ali dentro. Você
vem com um conteúdo, baseado em muitas coisas, como grade curricular ou plano
de curso, e vai ver como ele será transmitido para aquela fatiazinha de vida
que está com você naquele período de tempo. Você entra num fenômeno chamado
aula de dança. Não esquecendo a essência daquilo, eu gosto de abordar a dança
como arte, puxar o que existe de expressividade nos seres humanos que estão ali
comigo.
P: Depois do doutorado, você decidiu ficar fora do Brasil por mais
tempo?
Terminei meu doutorado e decidi que voltar para o Brasil seria
algo errado por causa da mudança que estava acontecendo no curso de Educação
Física da Ufes, onde eu iria passar só pela superfície da dança... Achei que eu
ficaria frustrada. Pedi exoneração e resolvi me inscrever nas vagas para
professor universitário que existiam nos Estados Unidos. Decidi me inscrever
com orientação da minha professora e orientadora, chefe de departamento e
grande amiga, Penny Hanstein.
Lá eu conheci muita gente, tinha uma rede de conexão muito ampla e
muito boa. Por outro lado, nunca deixei de vir ao Brasil, porque também minha
pesquisa de doutorado era um estudo cultural, a pergunta era a seguinte: qual é
a essência da nossa cultura nas danças dos trabalhos das companhias de dança
contemporânea em Vitória? Como estavam trazendo a cultura para o trabalho deles?
Então eu vinha muito a Vitória, fazia pesquisas de campo. Mas, todas as vezes
que eu vinha, pensava que a Ufes parecia ser totalmente fora do que eu estava
fazendo naquele momento.
Logo foi oferecido um contrato para mim na Carolina do Norte, na University
of North Carolina e eu entrei como professora lá. Como eu era brasileira,
incluíram também no currículo disciplinas específicas para eu ministrar, como
formas de movimentos brasileiros, onde eu podia dar um pouco de capoeira,
qualquer dança brasileira que eu quisesse. Dei aula também de outras disciplinas.
P: Como surgiu o Latina Dance Project?
Essas disciplinas que eles pediram que eu desse me abriram mais
culturalmente. E eu tinha conhecido uma pessoa ainda no doutorado, a Juanita
Suarez, que nasceu no México, quase na fronteira com o Texas, e que cresceu com
as duas culturas, a mexicana e a americana. Chegou, então, uma época em que eu
estava dando aula e quis montar um trabalho mostrando latinidade, e resolvi
chamar Juanita para vir comigo, como duas solistas, em um espetáculo meio a
meio, alternando um solo dela, um solo meu, depois a gente bateria papo com a
plateia. Aí convidamos também a Licia Perea e a Eva Tessler (e posteriormente
seu marido, José Garcia Davis). Cada uma de nós estava morando num estado
diferente. A gente escolhia um tema e desenvolvia os solos; se reunia uns três
dias antes de apresentar, ensaiava e apresentava. Por isso, começamos a chamar
de “Latina Dance Project”. Era uma delícia quando a gente se encontrava.
Viramos uma família.
Esse projeto continuou por muitos anos, começou em 2001 e foi sem
interrupção até 2013. Em 2014, eu já estava aqui, houve um evento nos Estados Unidos,
eu fui participar e nós nos reunimos de novo, e em 2015 eu trouxe, pela
terceira vez, a companhia para o Brasil para um evento aqui (eu já tinha
trazido em 2011 e em 2012).
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Foto: Steve Clarke |
P: O seu solo inicial era sobre algum assunto específico? Qual o
nome?
Eu fiz vários solos com eles. O primeiro que eu fiz foi “Momentos
de uma Paneleira”. O tema era “filha e mãe”; na mesma hora me veio a certeza de
que a vida das paneleiras é em família, as crianças seguindo as mães... Dito e
feito. Eu vinha demais ao Brasil, pesquisei, conversei, e era isso. Não quis
contar a história das paneleiras, coloquei “Momentos de uma Paneleira”, como se
fosse uma galeria. Em inglês, “Moments of a Paneleira”.
P: Assim que você voltou de novo para cá, criou o Projeto
EluzArtes? Como ele surgiu?
Eu parei de usar o nome “companhia”. Eu vim para cá em 2009. O
Latina Dance Project ainda existia. Nós começamos a fazer tanto dança-teatro,
que resolvemos incorporar ao nome, que ficou Latina Dance Theater Project (LDTP).
Quando eu vim para cá, essa companhia estava em muita agitação ainda,
tanto que eu me mudei para cá e voltei no mês seguinte para apresentar lá. Três
meses depois eu fui de novo, fiquei um tempão assim. Quando vim para cá em 2009,
a ideia não foi minha de criar uma companhia. A ideia saiu de bailarinas que já
dançaram comigo no grupo Axis, da Ufes. No início, não tinha nem meu nome, era
projeto MECA, porque eu queria só bailarinos maduros, queria explorar
Maturidade, Experiência, Corpo e Arte.
P: E essas ex-alunas já estavam com mais idade?
Já estavam com mais de 40. E eu já ia entrar nos meus 50. Aí
comecei a focar na maturidade. Dançamos na Europa em 2010, em Portugal e na
Espanha. E elas ficaram “Eluza, tem que botar o seu nome, esse negócio de
projeto MECA não dá...”, então mudou-se para projeto EluzArtes, e começamos a
tratar essa companhia e a outra companhia dos Estados Unidos como companhias
irmãs. A gente procurava fazer coisas juntas e fizemos! Até 2015, isso
funcionou. Hoje só estou com a daqui.
No projeto EluzArtes, somos em três. Uma na faixa dos 50, outra na
faixa dos 60 e outra na faixa dos 70. Meu foco hoje é a maturidade, entender a
vida – como dança – na maturidade. Somos eu, Lalau Martins e Maria Helena
Braga. Não existe uma diretora, trabalhamos colaborativamente, trocamos ideia
para tudo, todas somos diretoras, sendo que Lalau também pegou a produção.
P: Queria que você falasse um pouco sobre qual a importância de
abordar a maturidade na dança, e o que vocês têm descoberto nesse sentido?
Nós estamos dançando ainda. Então a gente acredita piamente que o
tempo passa, que você vai mudar com a idade, a sua dança não é a mesma de
quando você era nova, mas isso não significa que o valor dela diminua. A nossa
maturidade é muito valiosa na área da dança e tem muito ainda a enriquecer.
Olhe para nós. Nós estamos aqui fazendo. É feio? Estamos nos ridicularizando?
Tem muita gente nova que olha e fala que somos uma inspiração, e nós, quando
trazemos algumas pessoas mais novas para trabalhar com a gente (porque a gente
traz), a gente está sendo revigorada pela juventude delas, então é uma troca;
os jovens sentem-se inspirados, e nós nos sentimos revigoradas. A maturidade é
isso, não é que acabou a vida, que não se pode mais dançar. Você não faz mais
aquilo que fazia jovem, mas o que mais você faz? Existem outras possibilidades.
O movimento é muito amplo, o corpo é algo muito rico. Esse é nosso lema. A
gente mescla teatro, literatura, dança, etc, por isso que é projeto EluzArtes,
não é nem projeto “EluDança”. Nosso interesse são as artes de modo geral.
P: Antes da pandemia, em 2019, aconteceu o projeto DançIdade. Como
foi a experiência dessa mostra?
A gente tem vários espetáculos soltos, mas pensamos que também há
outras pessoas da maturidade que têm espetáculos soltos, então decidimos juntar
isso tudo num festival de dança e maturidade, daí o DançIdade. Foi um festival
que teve várias apresentações, a gente só convidou para o palco pessoas
maduras, sugeri trazer dos Estados Unidos um casal, formado por dois homens, Bill
Evans e Don Halquist. O Bill tem 80 anos e ainda dança, é muito ativo, dá aula,
é inspirador, e o marido dele, Don, tem 59 anos. Também trouxemos Sueli Guerra,
do Rio de Janeiro, e do Espírito Santo só convidamos artistas maduros, como a
Carla van den Bergen, o Elídio Netto, Gil Mendes, entre outros. Reunimos esse
povo para mostrar que nós não morremos na dança, não, e como vale a pena!
P: Nesses tempos de pandemia, como vocês têm feito?
Nós estamos mantendo a companhia. Estamos fazendo aula, ensaiando
e criando trabalhos pelo Zoom. Não está sendo fácil, mas não nos arriscamos de
outra forma. No ano passado criamos um trabalho que está no nosso canal do
YouTube: “Solevamos Juntas”. O verbo solevar significa erguer-se. Foi a partir
de uma música de um compositor americano amigo meu, cujo título pode ser
traduzido como juntas nos erguemos. Estávamos tentando estar com a outra, dar
apoio uma à outra.
P: Quais são os planos daqui para frente?
Nós estamos em atividade. Além disso, há vários projetos a serem
realizados se forem aprovados em editais. E a gente tem feito as danças
circulares; o grupo EluzArtes em Roda se reúne pelo Zoom, apesar de não
podermos dançar de mãos dadas. Quando acabar a pandemia, o grupo de roda vai
voltar a acontecer. Quem me inspirou a criar o EluzArtes em Roda foi a Fátima
Aguirre Ramos, comecei a fazer com ela, é muito lindo. Me encantei e propus uma
parceria com dança contemporânea e dança circular. Ela levou algumas pessoas da
dança circular, eu levei da dança contemporânea, e a gente fez esse casamento.
Já nos apresentamos em vários lugares.
P: O que é a dança para você, e por que dançar?
Dança é vida, a dança é a vida; é a melhor maneira de se entender,
de se conectar, de se colocar nessa vida. Tem aquela coisa mais pragmática –
melhora a funcionalidade corporal e a expressividade. Só que tem essa coisa
mágica, que é até mais importante, que é você se conectar com a vida, com o
outro, com o universo. Qual é meu lema na vida? Dançar, dançar, ver dançar,
dançar, dançar, ver dançar...
PARABÉNS MINHA DANÇARINA PREFERIDA 🎉🎊🎉SOU SUA FÃ 💐
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