Um dos nomes mais importantes das artes Afro-Brasileiras Cênicas do Espírito Santo, Renato Santos tem no seu entorno, entre família e comunidade onde nasceu e cresceu, suas primeiras referências de arte e de identidade. Nos anos 80, formou-se em ballet clássico pela Royal Ballet e estudou a Dança Afro-Brasileira Cênica do Método de Mercedes Baptista no Studio de Ballet Lenira Borges, além de ingressar no curso de Educação Física da UFES. Como artista, pesquisador e professor, Renato abriu caminhos à época não trilhados no estado – árduos especialmente devido a uma sociedade racista em sua estrutura –, o que resultou em significativo legado para a dança capixaba. Ao lado de parceiros, atuou pela profissionalização da categoria Dança Afro-Brasileira Cênica; é um dos fundadores do grupo NegraÔ; foi coordenador do curso de Dança da Escola Fafi e responsável pela elaboração do Curso de Qualificação em “Dança Afro-Brasileira Cênica”, Método Mercedes Baptista, do Museu Capixaba do Negro – MUCANE (para onde doou sua produção escrita sobre esta arte acadêmica). Atualmente, Renato é coordenador da ação multidimensional de avivamento da História da Diáspora Africana no Centro Histórico e do Morro Fonte Grande/Piedade, no Centro de Vitória. Confira a seguir a entrevista concedida pelo artista ao Portal Dança no ES!
P: Como se deu a entrada da dança na sua história?
Eu sou de uma família muito tradicional da cultura e da arte no Espírito Santo, que fundou a escola de samba Unidos da Piedade, que mantém a Folia de Reis do bairro, banda de Congo... e minha tia era uma famosa radialista do Espírito Santo, a Maria José, então os artistas que vinham do Rio de Janeiro e até de fora do país, ela que entrevistava, trazia aqui para casa. Eu acabei conhecendo muitos artistas importantes de várias áreas, então meu contato com a arte é desde criança. E com meu avô, ele ensinou uma arte marcial para mim e meu irmão, que é o Bassula, ou jogo de pernada, um jogo angolano. E também foi onde começou a capoeira. A escola de samba, em 1971, saiu com o tema Baía de Todos os Santos; então eles trouxeram aqui, nessa época, uma pessoa da Bahia para ensinar a capoeira e também trouxeram pessoas do terreiro de candomblé para ensinar as danças dos Orixás, é aí que eu tenho contato com isso. Então eu já vinha com esse convívio e esse conhecimento que minha família tinha de artista; e ganhei uma bolsa na escola da Lenira Borges, nos anos 70, eu era um adolescente.
P: Como a Dança Afro-Brasileira Cênica se estrutura?
Dentro do universo da dança Afro-Brasileira Cênica, existe a
dança clássica, que é baseada nas danças dos Orixás, e, basicamente, quem é
detentora dessa escola clássica é Mercedes Baptista, além de Joãozinho da Gomeia,
e, como mentor intelectual, Abdias do Nascimento – essa é a tríade da dança
clássica Afro-Brasileira Cênica. É uma dança cênica, de palco. Tem a parte da
dança moderna, que aí já tem influência do Jazz, e tem também a parte da dança
afro-brasileira contemporânea (um dos grandes dessa escola é Ismael Ivo). Então
a dança Afro-Brasileira Cênica tem todas as suas camadas históricas: dança
clássica, moderna e contemporânea. É igual à dança ocidental. Não é um apêndice
da dança clássica, nem da dança moderna, nem da dança contemporânea, ela é uma
nova estrutura, e essa nova estrutura tem o seu conteúdo clássico, moderno e
contemporâneo.
Então tivemos contato com Mercedes Baptista em 70 e 80, Lennie
Dale em 80 e 90, e, nos anos 80, começando o surgimento da dança contemporânea
em São Paulo – aí a gente começa a ter um contato rápido, porque logo depois o
Ismael Ivo foi para fora. Mas eu consegui ter contato com todas essas camadas.
Por isso é que eu falo: é uma dança cênica, de palco e tem essa estrutura;
porque o que eu vejo as pessoas escrevendo e falando... não captam isso, e
muito por racismo estrutural, por pensar que por ser uma dança africana,
afrodescendente, não tem a capacidade de ter todas as camadas de uma dança
cênica, então começa-se a discutir... “é uma dança folclórica, popular,
tradicional...”. É baseado na dança folclórica, na dança popular, na dança
tradicional, na dança religiosa, assim como o clássico é. Quebra-nozes é um
tema folclórico russo. As fadas, os gnomos que existem na dança clássica são do
folclore europeu, da Europa Caucasiana. E é uma dança religiosa, porque os
elfos são seres da religião europeia não cristã. Então se vive isso com uma
facilidade enorme na dança europeia clássica, e quando chega na nossa dança
cênica, começam a falar que é macumba, é feitiçaria, poxa, mas não usam as
mesmas coisas? Por que não chamam as fadas, os gnomos da dança clássica de
macumbaria, feitiçaria?
Essa é uma maneira de ver o preconceito estrutural, que não
declara que está fazendo racismo, mas usa toda a estrutura do conceito já
existente para fazer racismo, para a opressão contra a dança cênica
afrodescendente. E dentro da dança cênica afrodescendente tem as danças
africanas nacionais, que é Dança de Angola, Dança de Nigéria, Dança do Congo,
mas dança Afro-Brasileira Cênica é um guarda-chuva cênico que abriu a porta
para todas essas manifestações cênicas de palco que hoje existem.
P: Como você chegou a fundar o NegraÔ, qual era o contexto?
Quando eu entro na Ufes, eu levo todo esse conhecimento para
lá. A dança afro, os conhecimentos das tradições dos povos Bantus do Morro da
Fonte Grande, eu levo tudo lá para dentro, eu não me divido, eu sempre fui
inteiro, não sou daquelas pessoas que... “quando você se descobriu negro?
Quando você se descobriu afrodescendente?”. “Desde sempre!” Eu entrei na Ufes
sabendo quem eu sou e sabendo o que eu tenho; e, entrando lá, eu impus isso. E
lá encontrei parceiros, que foram o professor de História Cleber Maciel, Verônica
da Pas, Ariane Meireles, Lavínia, Sueli Carvalho, Sueli Bispo, entre outros,
esses são os mais próximos. Como eu já tinha formação de clássico, já tinha a
formação de dança afro cênica, a gente começou a divulgar isso dentro da Ufes,
e criamos um grupo de estudos (nos anos 80). Tivemos como mentor o Cleber
Maciel; tivemos o professor Paulo Roberto também nos conduzindo, mostrando
autores. Por isso que eu falo que é uma dança acadêmica, porque há um estudo
acadêmico extremamente aprofundado, e hoje eu estou compilando isso, tenho
várias coisas já escritas. Eu vi que há uma carência. Depois de tanta gente ter
feito, ainda há pessoas com dúvidas do que é – e se é. No mínimo, por falta de
conhecimento.
Montamos o NegraÔ para fazer a reafirmação de que é uma
dança cênica, de que é uma dança de palco. A primeira coreografia profissional
foi em 1991. Então a gente considera o primeiro momento da dança
Afro-Brasileira Cênica capixaba com a primeira coreografia do NegraÔ, que faz
30 anos agora. E este ano é muito simbólico, porque faz 70 anos que Mercedes
Baptista retorna dos Estados Unidos, ela foi para lá através da bolsa que ganhou,
e lá ela tem contato com o movimento black (preto) nos Estados Unidos.
P: Os debates e as rodas de conversa sempre estiveram
presentes no NegraÔ e nos aulões, né? Você também já foi coordenador do curso
de Dança da Fafi e responsável pela criação do curso de Qualificação em Dança
Afro-Brasileira Cênica no Mucane. Qual é seu olhar sobre a educação e o ensino
da dança afro?
P: Sobre a sua trajetória como bailarino, gostaria que falasse
um pouco sobre seu contato com a dança-teatro e o espetáculo “A Flor da Pele”,
um dos mais recentes antes da pandemia.
Nesse caminho, existe uma outra escola em que aprendi muito,
que é a escola da dança-teatro. Houve um festival patrocinado por uma marca de
cigarro e, naquela época, veio a Pina Baush e escolheu algumas pessoas para
ficar uma semana ou duas com ela e a companhia dela no Brasil, e ela fez uma
apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro depois. Ela veio, deu
palestra, aulas para esse grupo que ela escolheu, e uma dessas pessoas fui eu. Foi
aí que tive contato com essa técnica.
Toda a técnica do gestual era feita para ter uma
intencionalidade de fala, de ser uma fala, de ser um sentimento. Ali foi uma
coisa libertadora. No afro a gente tem isso, mas eu também venho de uma escola
clássica que não tem muito isso, aí eu consegui usar aquela técnica do clássico
com todo o potencial que eu conseguia fazer no afro, através do que Pina Baush
provocou na gente. Ela dizia “seu salto é lindo, sua pirueta é linda, mas todo
mundo que é formado em ballet faz. O que é isso para você?”. É a técnica para
além da técnica. Achei meio duro na época, pensava “levei tantos anos para
adquirir isso...”. Mas foi fazendo total sentido, virou a chave. A dança afro
já tem isso na sua essência, porque vem de uma dança sagrada. Ismael Ivo, por
exemplo, conseguiu fazer essa junção, e eu comecei a entendê-lo melhor depois
disso também.
Foi aí que comecei a fazer essa ligação da dança clássica
com a dança afro e com essa potência teatral. E criei essa minha última
coreografia, “A Flor da Pele”, que prenuncia o que iria acontecer, a pandemia,
a solidão, a angústia. Eu dancei umas três ou quatro vezes, e pensei “ah, não
posso dançar mais essa coreografia”. “A Flor da Pele” eu não quero dançar mais.
Dói muito. Tem danças que doem. Você termina de dançar, ela te dói no
sentimento, é uma angústia, e angústia dói no corpo. Este é um espetáculo de
dança-teatro – eu gosto de sinalizar qual técnica é abordada porque danço várias
técnicas. Quem me conhece da dança afro, por exemplo, vai esperando um
espetáculo de dança afro. Eu danço também as danças urbanas, sou um dos
primeiros a dançar danças urbanas no estado.
P: Considerando desde quando você inicia todo esse movimento
da dança Afro-Brasileira Cênica aqui, e ele vai ganhando também as escolas,
como você avalia o cenário da dança no estado? De lá para cá, o que se tem
feito a partir disso?
Uma parte da minha família é do Rio de Janeiro, então eu ia
passar as férias de verão no Rio. Tive contato com as escolas de classe média de
lá, Lennie Dale, técnicas de dança. Eu consegui ter essa formação. Hoje há uma
grande diferença, porque nós estamos aqui no estado e temos essa formação,
então a gente consegue passar para mais pessoas. Na minha época, você contava
nos dedos: éramos eu, Ariane, Walter e Ciça, que nos juntamos e criamos o
NegraÔ.
Hoje formamos muitas pessoas, e há muitas pessoas lá na Ufes
que podem fazer isso. Agora, por que não fazem é uma outra história. Mas hoje
há essa possibilidade. A Ariane está aqui, eu estou aqui, Walter está aqui, Ana
Cecília está aqui; nós não saímos daqui. A grande diferença é que hoje há uma
matriz de conhecimento, o que na época não se tinha. Isso se deve muito a uma
obstinação da Lenira Borges em trazer todas essas técnicas para o Espírito
Santo. Hoje existe essa matriz aqui, ninguém precisa se deslocar para o Rio ou
para São Paulo, como a gente fez na nossa época.
P: É essencial que haja o cuidado e a responsabilidade de
manter vivo o que foi construído até aqui, né?
Na nossa época, não tinha grupo de estudos da cultura
africana e afro-brasileira, hoje tem na Ufes. E por que abandonaram esse legado
na Ufes? Portanto é ético, penso eu, estes assumirem esse legado dentro da universidade,
porque o trabalho que nossa geração fez não pode ser apagado ou jogado fora; hoje
é uma herança dos povos africanos no Espírito Santo, e é um espaço de afirmação
e reafirmação, portanto a Ufes e os afrodescendentes que estão na universidade
precisam urgentemente assumir esse legado, não como uma dança folclórica,
tradicional ou da pesquisa sociológica ou antropológica. Não. Como arte
acadêmica cênica.
Hoje existe um núcleo de estudo da cultura africana e
afro-brasileira dentro da Ufes. Há um capital, um cargo para isso. Na nossa
época não existia. Se ganham pouco ou ganham muito, na nossa época a gente não
ganhou nada. E se acha que é pouco, lute para ganhar mais, mas negar, apagar ou
afrouxar por isso... num país racista você vai ganhar pouco e não vai ser
valorizado. Então ou luta, ou luta.
Nosso trabalho transformou-se no NegraÔ e em uma profissão no Espírito Santo, e essa profissão se transformou em uma escola, que é mantida com o dinheiro público, e isso para uma arte que há pouco tempo era chutada; para ter um espaço, uma sala com professores, em uma estrutura paga com dinheiro público... é um avanço absurdo, não se pode perder isso. O curso de qualificação tem que continuar aberto, o Mucane tem que continuar aberto. Todos os legados que a minha geração, enquanto aluno, e a geração do Cleber Maciel, enquanto professor, deixaram na Ufes não podem morrer.
P: A partir da sua vivência, temos aí a importância de ter a
dança, particularmente a dança afro, também como arte acadêmica, mas, para além
disso, o que é a dança para você, na sua vida?
P: Você tem planos de um novo trabalho de dança?
Eu tenho vários prontos. Eu continuo criando. Tenho alguns
antigos, que estou recuperando, e tenho vários outros novos que eu vou lançar.
O baú já está cheio. Quando terminar a pandemia e abrir algum espacinho, eu já
estou pronto. Estou treinando todo dia. E isso foi outra coisa que eu aprendi
com a Mercedes, e depois a Pina Baush me confirmou – isso é o básico que você
tem que fazer, isso espera-se, o que a gente quer é além disso.
P: Algum desses trabalhos já tem nome?
Tem, sim. “A Quinta Parede”, que é um espetáculo de multiplataformas. Eu peguei as músicas de Sérgio Sampaio, os textos de Rubem Braga e juntei, fiz um conto de um jornalista angustiado porque não tinha mais o que escrever, mas a cabeça dele estava cheia, ele tinha que escrever. Aí eu escrevi sobre essa pessoa, usando duas plataformas diferentes (música e crônica) e passei para a plataforma da dança-teatro. Esse é o meu espetáculo de reestreia. É um espetáculo que eu fiz em homenagem a Rubem Braga em 2001. Pretendo retomá-lo porque acho muito parecido com o momento de agora, que é uma pessoa dentro de uma casa, sozinho, isolado, tendo que produzir em home office. E tem um novo, que eu estou fazendo, que aí é segredo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário