terça-feira, 14 de setembro de 2021

AFRICANIDADE, CIÊNCIA E "RELIGARE": O BAILARINO PAULO FERNANDES CONTA SOBRE SUA TRAJETÓRIA

 

A curiosidade de um cientista talvez tenha sido a força motora que o fez ir para trás e adiante no tempo. Atrás, como um arqueólogo em busca de suas raízes, sua história, sua ancestralidade. Adiante, a fim de criar conexões ainda inexistentes, outras realidades, palpáveis ou imaginadas, desejadas. Paulo Fernandes é bailarino, coreógrafo e pesquisador da cultura Bantu, mas também muito mais do que isso. Com mais de 40 anos de carreira, Paulo é um artista multimídia, que conjuga diversas linguagens artísticas (ou seriam científicas?) em seus trabalhos, como cinema, teatro, dança e artes visuais, construindo um encontro muito particular na gestualidade e na estética. Pela crítica francesa, foi reconhecido como um “dançarino das profundezas do simbolismo afro-brasileiro”. Para o Espírito Santo, é um dos nomes de maior importância da dança contemporânea realizada por aqui, estando presente de forma pioneira nesta arte. É fundador da Cia. Enki de Dança, na qual atua até os dias de hoje. Como pesquisador, entre diversas contribuições, inaugurou o acervo “Memória da Dança” no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), além de receber honrarias e o título de Notório Saber Cultural. Confira abaixo a entrevista que o artista concedeu ao Portal Dança no ES!  


Foto: Luara Monteiro


P: Como começa sua história na dança?

 

Minha trajetória se deu a partir da minha descendência (e há a complexidade de se entender isso no Brasil, particularmente a questão negra). Meu bisavô foi um dos responsáveis por trazer o Congo da África para cá. Eu encontrei essa referência no livro de Guilherme Santos Neves, no “Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba”, e eu começo a fazer essa investigação de retorno da minha ancestralidade. Eu só conheci meu bisavô com nove anos de idade. Nasci aqui no Centro de Vitória, minha mãe veio para cá cedo, ela é de Acioli e todos os meus ascendentes são da comunidade do Morro do Feijão, onde meu bisavô cria a Banda de Congo Alegria. Guilherme fala de algumas músicas que eu tentei buscar para resgatar essa sonoridade, porque isso tinha particularmente a ver com a minha dança, e eu começo a montar um quebra-cabeça para entender essa sonoridade que transpassava meu corpo e eu não tinha noção.

Esse material arqueológico foi me dando densidade corporal. Eu lembro que eu tinha 7 ou 8 anos, o “shopping” que havia aqui era ali na Costa Pereira. Eu adorava ir lá ver carrinho, coisa de criança, e tinha música, eu começava a dançar no colo da minha mãe. Minha mãe me largava no chão e eu dançava ali, sem vergonha, sem pretensão nenhuma. Nessa atuação, um cara de uma loja achava interessante o que eu fazia, porque indiretamente eu estava fazendo propaganda da loja, e ele me pagava, me dava algum dinheiro para eu comprar manteiguinha, que eu amava. Mamãe saía de lá comigo e a gente ia para a Costa Pereira, havia um bar onde a gente tomava café com leite e manteiguinha.

Dez anos depois eu fui para o teatro, em 1977, quando conheci Milson Henriques. Através dele eu comecei a fazer teatro. Também com essa bagagem que eu tinha do meu bisavô, que eu ainda não sabia tanto, fui entendendo a relação musical com o congo, que eu tinha uma tendência a dançar e um ouvido pensante, e isso foi me dando caminhos. Eu entrei no teatro e a primeira apresentação que fiz foi de teatro infantil, com o espetáculo “Show de Sorrisos”. Amylton de Almeida, que era o nosso crítico de arte, assistiu, e saiu no jornal no outro dia falando que a melhor construção de personagem era a minha, então eu já entro tendo a fé para poder dar continuidade.

Dali, eu migro para a dança em 1986, conheço Magno Godoy na rua e Marcelo Ferreira e começo a fazer dança. Antes disso, fui chamado para trabalhar com Denise Marques. Em torno de 1981, nós fomos para a Bahia, e eu tive a sorte de ver pela primeira vez o Ismael Ivo. Na época, nós tínhamos um espetáculo sobre São Mateus e fomos apresentar no Teatro Castro Alves. Também tive sorte de ter tido aula com Klauss Vianna; e foi a primeira vez que eu vi Butoh e eu fiquei impressionado. E em 1986, com essa bagagem, eu fui para o Neo-Iaô, a gente acaba fundando a primeira companhia que trabalhava dança contemporânea aqui, e eu fui adentrando esse universo.

 

P: Qual foi a importância do Neo-Iaô para você?

 

A importância do Neo-Iaô é porque era uma escola, na verdade. Todos os dias da semana nós estudávamos e sábado, por exemplo, a gente ia para o cinema ver tudo o que era possível. Magno era ligado a cineclube, a Claudino, Margarete Taqueti, pessoas que introduziam cultura na cidade, e a gente estava nesse lugar porque a companhia foi tomando espaço e desenvolvendo essa ideia de contemporaneidade. Então nós tivemos oportunidade de fazer Butoh, o que era bem diferente aqui porque não tínhamos outros acessos, tivemos que viajar para São Paulo (eu já tinha tido a sorte de ver em 80). A gente também fazia Ballet Clássico Russo, tudo o que a gente não tinha... Magno viajava para São Paulo para fazer aula lá com o Bolshoi, voltava e fazia aula com a gente. Então tínhamos aula de dança, de ballet, de Butoh, um dia a gente ia ao cinema, em outro dia a gente fazia só estudos literários, poesia. A gente também permeava a relação da psicanálise com a dança.

A gente viajou pelo Brasil, fomos aos melhores palcos de teatro, trabalhamos com gente importante, como Jocy de Oliveira, Abujamra, Ayrton Pinto, fomos para o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e viramos uma referência no estado, porque até então não tinha um trabalho de dança contemporânea, tinha moderna, mas não contemporânea. Então essa ideia de investigação minha não veio só da minha ancestralidade (essa busca de identidade afro-capixaba), mas também desse processo dessa escola, que foi muito importante e que me deu noção de estética, de luz, de conceito, de percepção.

 

P: Você converge várias linguagens, como um caldeirão que compõe a sua trajetória na dança, até mesmo depois de sair do Neo-Iaô, não é?

 

Foto: Jöel Pöitzer

Exatamente, e foi quando eu me toquei disso... Eu já tinha feito cinema, em 1987, eu fui convidado para fazer um personagem num filme alemão. Eu era “policênico”, como sempre fui, multimídia, tinha feito cinema, jazz, cartazes, fotografia... Passei por várias áreas das artes, fui desenvolvendo a ideia de estética, preparação corporal, vocal, interpretação, literatura...

Em 1990, eu percebo que não existia nada muito profundo, ou algo a mais, sobre a cultura e a identidade afro-capixaba, aí eu saio do Neo-Iaô já com um currículo, um material histórico, e vou começar a desenvolver o meu trabalho solo até 2000, quando eu monto minha Companhia Enki.

 

P: Como surge a Companhia Enki?

 

Na verdade, a companhia surgiu porque eu entendi a necessidade do Espírito Santo de ter um trabalho sobre a questão negra e de me entender também como humano. A palavra Enki é a junção de dois sentidos: “En” quer dizer céu, e “ki” quer dizer terra; inclusive, independentemente de ser uma palavra someliana, até em japonês quer dizer terra. E eu falo que o homem é um intercessor entre esses dois espaços.

Eu comecei a estudar povos antigos, porque entendi que no ballet a gente não estuda a respiração; a gente tem postura, mas não sabe respirar (tem intuitivamente, mas não há aula de métodos respiratórios, uma das coisas que me incomodavam muito na dança). Eu queria alguma coisa inteira, não fragmentada. E então crio essa imersão para entender, em particular, a questão respiratória, aí comecei a estudar Mudras, dança indiana, Kathakali, para trabalhar essa gestualidade dentro da minha relação identitária. Então eu fui para fora de mim buscar todas as referências possíveis, japonesas, kabuki, tudo, para trazê-las e dar essa espessura da minha corporalidade, que já existia na infância, mas eu tive que estudar esse corpo para compreender todo esse manancial.

 

P: E você acha que esses atravessamentos, essas pesquisas acabaram por constituir uma estética particular, própria?

 

Eu acho que esses atravessamentos me fizeram perceber, primeiramente, que a dança é uma das expressões artísticas mais complexas. Eu, hoje, entendo que sou um cientista, não sou um bailarino, porque, na verdade, consigo pensar que a dança é uma matemática, meu corpo é projetado no espaço e no tempo e meu gesto vai desenhar nesse espaço, escrever no espaço, essa carga existencial vai ser traduzida através do gesto, o gesto é símbolo e código de interpretação do que eu vejo e entendo do mundo. Isso para mim é uma ciência, é a ciência da interpretação.

Eu consegui criar uma estética própria, fazer uma pesquisa para dar densidade ao que eu falava, por isso que quando eu fui para a França, para mim foi um choque, porque era interessante essa aproximação, essa troca com outra cultura; e eu me lembro muito de uma professora que virou para mim e falou “você realmente é artista, você fala o que você faz”, aí eu comecei a entender como era complexo falar daquilo que eu faço.

 

P: Particularmente a sua inteligência e a sua curiosidade foram te direcionando...

 

Eu também acho, fui projetado, eu fui jogado. A minha ancestralidade, hoje, depois da transcendência da minha mãe (eu estou chamando assim), me deu mais percepções para entender, por exemplo, a cultura africana, em especial a cultura Bantu, que é um percentual muito grande do Espírito Santo e que é também a origem do meu bisavô, que trouxe o Congo, então eu já era algo, eu descobri que existe uma pérola, uma joia dentro de mim e eu fui desenvolvendo. E graças à minha mãe, porque eu tinha um outro mundo, eu ia para a escola e chegava em casa e tinha um tipo de aprendizado conversando com a minha mãe. Ela dizia alguma palavra que eu não conhecia – por exemplo, “mondongo”; o que é mondongo? Ia perguntar para a professora, mas não era ali que eu encontraria resposta...

 

P: Sua mãe, a dona Laura Felizardo, foi uma griô?

 

Foto: Luiz Carlos Cardoso
Minha mãe era uma griô. Particularmente, sim, porque ela sempre me trazia coisas, por exemplo, o trabalho que a gente está fazendo agora, chamado “Palavras Invisíveis”, é exatamente sobre esses termos que ela falava e que eram de origem Bantu. Eu recorto essas palavras, essas letras, monto o figurino para fazer uma performance na água, porque é o mar que vai fazer essa transição África-Brasil, e particularmente o Espírito Santo. Então eu vou nas minhas origens, atravesso o oceano para trazer a minha identidade e esses elementos que aparentemente estavam soltos. Na saia, eu repito as letras, as palavras que ela falava, por exemplo “marimba”, que é um instrumento, mas também é um brinquedo, para mim é até uma arma, uma pedra que era amarrada a uma corda para tirar pipa do fio.

 

P: Seu trabalho parte de muitas conexões, né?


Meu trabalho é conceitual, o elemento fala; não tem como desassociar a ideia do meu corpo nem meu corpo do elemento. Eu entendo que o corpo é o lugar das ocorrências; o que não perpassa pelo meu corpo? Não só a química, a biologia, mas pensar, escrever, o que é escrever? É a interpretação de códigos, de elementos? A mão seria um instrumento de escoação desse pensar, como esse pensar vai retratar através de símbolos que a gente diz hoje que é escrita. E aí eu fico pensando, por exemplo, que esses rabiscos, essa descrição corporal, esses gestos, também são escritas; como eu posso pensar a origem da escrita no mundo?

Foto: José Luiz Monteiro 
Eu comecei a entender que, da mesma forma que esse movimento ondulado simboliza a água, na religiosidade, no Candomblé, por exemplo, você tem a ideia de ondulação, de água, na própria ideia da africanidade. Então entender, por exemplo, a questão das religiosidades, dos elementos da natureza como continuidade desse corpo, para mim, é o mais sagrado, e entender que a origem da dança está ligada à religiosidade; religião significa religar, voltar aos princípios, e a dança para mim é um princípio de conhecimento, é uma conexão mesmo.

Eu acho que essas conexões e imersões que fui fazendo foram elementos para eu entender a minha africanidade, a minha ideia estética e o que eu posso fazer com isso.


P: Trata-se também de um processo de autoconhecimento?

 

Sim. Quando eu descubro o termo Bantu, por exemplo, que é um dos grupos étnicos mais importantes de toda a região sudeste Saariana, eu não sabia que eu era tão antigo. Eu tinha um grande problema na infância, eu abria os livros de História e via o egípcio e ficava incomodado, porque eu me via parecido, mas eu não sabia como eu poderia estar ali no livro e estar aqui no Espírito Santo, eu não entendia! E eu não entenderia isso na escola porque era muito raso o que estava escrito ali. Depois eu fui entender meu perfil, minha estrutura craniana, meu olho puxado... Mas foi muito duro, porque eu não tinha esses elementos na minha mão com tanta facilidade.

É muito complexo, porque a colonização é muito bem-estruturada, então, para entender um negro no Brasil, com todo o processo dessa memória da escravidão, diaspórica, é muito mais complexo. Eu me vejo hoje meio que um vencedor. Eu tive a percepção de ir para um caminho, mesmo que intuitivamente, consegui colher esses frutos, isso graças à minha ancestralidade e, em particular, à minha mãe. Minha mãe, por exemplo, eu sempre quis (e consegui) que ela adentrasse um teatro. Ela foi, entrou em cena. Eu faço minha mãe (eu) voltar, porque é a ideia de retorno, de ancestralidade, eu perpasso pelo útero e vou para as minhas origens. E trago ela para dentro do teatro, a cena é linda, de “Corpo Atlântico”, de 2018/19.

 

P: Dona Laura chegava a intervir nas suas criações?

 

Ela me auxiliava no sentido de pegar esses elementos e pensar como ressignificá-los, de falar dessa dor sem essa angústia. Minha mãe tinha Alzheimer; eu tive um trabalho de trazê-la para um processo de cura, então eu brincava com ela, ao mesmo tempo em que eu a vestia, porque isso era a memória da mãe dela; levava para o cinema, para festa, meus amigos adoravam mamãe, falavam “que gracinha...”, e eu achava tão natural essa jovialidade dela! Eu falo que ela virou uma estrela, porque, de repente, aparece um poema sobre minha mãe lá no Paraná... Isso também me ajudou a entender a saída dela, senão eu piraria. Se eu não tivesse tido essas percepções, eu estaria, sinceramente, louco. A gente era carne e unha.

Aí você começa a ver a estética, a busca identitária, a relação do afeto com transformação social, de como ela era partícipe, ela não tinha idade para mim, eu a chamava de “bonita”, porque eu sabia que isso era autoestima, e ela brincava, ia na onda, adorava falar com jovens; eu falava “vamos passear!”, ela não queria nem saber para onde, ela ia. Ela tinha essa percepção também, acho que é uma coisa de não morte, a força que ela tinha de estar sempre colorida, de não ter idade, não tinha esse preconceito, e isso foi importante não só para mim, mas para outras pessoas. Era um tipo de amor que a minha mãe tinha que se propagava, e ficou instaurado no coração das pessoas. Isso é processo de arte, a arte cura mesmo.

 

P: Na sua visão, como sua trajetória artística afeta também o nosso entorno como sociedade?

 

Se eu vivi 40 anos e nunca ouvi esse termo Bantu... num país desse, num país desse no século XXI... sinceramente, eu cumpro o papel da saga do herói. Sem nenhuma pretensão, sem nenhuma cena, eu não sou estrela, mas eu acho que é um grande tesouro particularmente para a questão negra do Brasil, eu faço parte de uma cartografia, meu trabalho faz parte de uma cartografia desse corpo afro-brasileiro, que é complexo demais. Por exemplo, a gente não consegue traduzir às claras, vamos dizer assim; a palavra “candomblé” tem muito mais a ver com a identidade capixaba do que com a baiana, é mais Bantu, que é um percentual muito maior, de 63,3% do Espírito Santo, do que na Bahia, que é de outro grupo étnico, nigeriano.

Então a gente começa a perceber essas nuances e começa a entender esse corpo instalado nesse estado. Como que eu, Paulo, como que a arte me permitiu, me instrumentalizou como um cirurgião, um médico... eu sou inclusive um dos primeiros a receber o Notório Saber Cultural exatamente por essa pesquisa. Então, quando eu recebi aquela crítica da França (“dançarino das profundezas do simbolismo afro-brasileiro”), eu entendi que isso era muito maior, mais abrangente, para além da minha geografia e da geografia de onde eu moro; e ela vai se propagando, há pouco tempo soube que tinha material meu em uma biblioteca em Nova York.

 

P: Sua pesquisa também dialoga com o Afrofuturismo?

 

Muito. Tem uma foto do “Acqua” de quando eu pego uma bacia e a coloco na cabeça, que é exatamente essa visão do Afrofuturismo. Essa bacia vira uma parte do corpo, onde a gente toma banho e fala de ancestralidade. O intérprete começa abaixado e as duas bacias estão uma sobre a outra, com ele dentro da bacia e a outra na cabeça dele, e quando começa com a luz e o som de água borbulhando, a luz azul refrata e vira um negócio parecido com um disco voador! Então eu acabo não sendo só o bailarino, eu tenho que estar envolvido com a cena, com a estética, com a luz, o figurino...

O Butoh tem muito disso de olhar para dentro, da vida e da morte, do minimalismo, do nada, da ausência, de uma certa negação, eu acho que tem muito a ver com a questão africana e por isso eu acho que eu trago no Butoh uma relação com a minha identidade. Porque é uma ausência cultural, uma lacuna, que essa expressão Bantu vem preencher. Resgatar isso tem a ver com o Afrofuturismo, para refletir dentro da arqueologia, da biologia, discutir a questão racial, discutir a questão tecnológica, a visão de ciência e conhecimentos e saberes ancestrais, com a visão africana dialogando com outras culturas, com etimologia, com etnologia.

 

P: Quais foram os seus trabalhos mais recentes durante a pandemia?

 

Foi uma performance que eu estava fazendo ontem [risos], montei um espaço aqui e enchi de areia. O nome do trabalho é “Ori.gens”. Por causa das origens, mas eu falo da cabeça. Em Yorubá, “Ori” é cabeça, e essa “gens”, essa genética, da onde viria esse pensar para estruturar o que é humano, o que é pensar.

 

P: E antes da pandemia, um dos últimos espetáculos que você apresentou foi o “Epopeia de Gilgamesh”. Apesar de ter sido montado em 2016, ele dialoga com o atual momento?

 

“Epopeia de Gilgamesh” é muito contemporâneo, muito forte em relação a esse momento pelo qual a gente está passando, da não compreensão dos governantes, desse distanciamento de coisas a que a gente tardiamente vai ter acesso; e agora com esse excesso de tecnologia, a gente está exaurido e não tem muito para onde ir, nesse isolamento, e até de nós mesmos, porque eu acho que o futuro é voltar para trás, é ir ao encontro da linha de retorno, de voltar para as origens. Quem não tiver essa “sacação” ficará muito mais fragilizado. Aí penso a arte como uma possibilidade de transformação mundial mesmo. Acho que a maior moeda do século XXI é o conhecimento. E essa ideia de trabalho com a ancestralidade é a ideia de preservação do futuro.

 

P: Dançar, para você, é um encontro com a ciência? E o que mais além disso?

 

Total. É muito além, também é um “religare”. A dança é uma projeção no espaço, é uma intervenção, esse corpo está projetado na casa, que tem a ver com arquitetura, então nós somos o arquiteto, nós estamos rearquitetando esse espaço. Eu acho que é muito mais que ciência, sim. Acho também outra coisa, o corpo africano é uma instalação, ele se coloca perante a natureza, ele se pinta de branco (o que não tem nada a ver com raça), no sentido de adentrar a natureza. Essas poéticas mínimas de trazer milhões de potências e inter-relações. Acho que estão sempre muito integradas arte, ciência, antropologia, sociologia. São vários níveis e estágios e é o tempo todo essa ressignificação. Nada está separado e a gente estuda tudo separado, esse é o grande problema.




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