sexta-feira, 1 de abril de 2016

Uma vida dedicada à dança

Precursora do ballet no Estado, Lenira Borges fala sobre vida e arte em entrevista para o Dança no ES


Entre os altos prédios da região da Praia do Canto, mantém-se firme o antigo e gracioso edifício de poucos andares, quase como testemunha do tempo, onde vive Lenira Borges, uma das grandes artistas da dança. Com igual graça e firmeza, dona Lenira, como é conhecida pelos próximos, conduziu sua carreira de bailarina e professora de ballet praticamente ao longo de toda a vida, saindo de Porto Alegre para lecionar em diversas cidades – a exemplo de Curitiba, Teresópolis, Três Rios e Rio de Janeiro –, até chegar a Vitória, no início da década de 1960. Precursora da dança clássica no Espírito Santo, foi responsável pelo desenvolvimento e pela difusão da dança local, quando poucos aqui conheciam essa arte. A partir da criação de sua academia, Lenira Borges Ballet Studio, hoje dirigida pela filha e pela neta (Rosana e Mariana Borges), formou gerações de profissionais da dança, a exemplo de Inês Bogéa, Mitzi Marzzuti, Mônica Tenore, Karla Ferreira, entre outros nomes. Além disso, dedicou-se a trabalhos sociais, realizou festivais, promoveu a vinda de coreógrafos de outras cidades e contribuiu, pessoalmente, para a abertura de espaços com estrutura mínima para apresentações de ballet, a começar pela reinauguração do Theatro Carlos Gomes, em 1970. Hoje, do alto de seus quase 93 anos e ainda muito disposta e bem humorada, entre bordar os próprios tapetes, costurar, ler de tudo, cuidar do jardim e da casa, dona Lenira orgulha-se de seu legado. Não poderia ser diferente: “A dança é minha vida!”, declara a eterna bailarina, que carrega, no corpo e na alma, também a história da dança desta terra que a acolheu.


Confira a entrevista com a artista para o Dança no ES!






DNES: Como a dança está presente na sua vida?


Lenira - Foi minha vida dos 22 aos 70, então, é muito tempo. Foi minha vida toda. Depois, eu parei porque já estava muito velha, com 72 anos. Minha filha e minha neta já estavam dando aula, e hoje estão à frente da academia como diretoras, a Rosana e a Mariana. Elas fizeram o mesmo curso que eu fiz na Royal Academy of Dance, com os mesmos diplomas.


Com quantos anos começou a dançar? Quando foi que percebeu que era isso o que queria fazer?


Foi engraçado. Não fui eu que comecei, foi a minha irmã. Eu fui assistindo às aulas, me empolguei e acabei fazendo aula com a Tony Seitz Petzhold, que era professora no Rio Grande do Sul, uma alemã. Depois, meu pai se mudou para Curitiba e nós interrompemos os estudos para ir para lá.

Em Curitiba, minha madrasta, na época, trabalhava com assistência às crianças pobres. Conversando, tiveram a ideia de fazer um festival de dança para ajudar na renda das coisas que elas faziam, então, eu e a minha irmã ficamos encarregadas de realizar o festival, porque, naquele meio, nós éramos umas das poucas filhas das senhoras que trabalhavam lá que faziam ballet e conheciam o assunto. Nós preparamos um festival em um dos cinemas de Curitiba, porque Curitiba ainda não tinha palco. Foi muito bem recebido pelas meninas, por toda a sociedade, foi um sucesso muito grande e as gurias não queriam mais parar de dançar. Foi assim que eu e minha irmã nos transformamos em professoras de ballet. Até então, eu só dançava.



É verdade que mais deu aula que se apresentou?


Eu nunca me apresentei, porque meu pai era daquele método antigo de que tudo era proibido para gente. O palco, então, era considerado algo de prostituta, como todo mundo que leu um pouco sobre dança sabe. Algumas bailarinas da Europa tinham que se prostituir para ganhar a vida dançando. Então, ficou meio um tabu de que bailarina e prostituta era a mesma coisa. E o meu pai foi assistir a uma aula, não achou nada que pudesse reprovar, então, disse “pode estudar, mas não pense em pisar num palco, a condição é essa”. Eu também não estava nem pensando em palco naquela época. Por isso, nunca dancei, mesmo depois que eu dava aula.

Para não dizer que nunca dancei, dancei em Petrópolis, porque a minha aluna, que era solista, no dia da apresentação, a mãe faleceu e ela não tinha condições de ir para o palco. Eu disse “você fica quietinha, que eu, como sei a coreografia, vou dançar no seu lugar, mas você não vai dizer nada para ninguém”. Fiz isso só para não quebrar o espetáculo das colegas dela. Não podia exigir que uma filha que perdeu a mãe fosse dançar. Esta foi a única vez que eu dancei e, só quase no final da dança, uma mãe me reconheceu. Foi a única vez que eu pisei num palco.


E se realizava como professora?



Como professora, vendo minhas alunas brilhar, e, graças a Deus, desde que comecei a lecionar, sempre tive sucesso, tanto em Curitiba, quanto no Rio, como em Petrópolis. Eu lecionei em Petrópolis, Teresópolis, Três Rios e no Rio. Este era meu ganha pão.


Como a senhora veio para Vitória?


Da primeira vez, eu não vim para ficar em Vitória, vim trazer a Rosana, que era neném, tinha recém-nascido. Meus pais já moravam aqui, então, vim trazer a minha filha para eles conhecerem. Ela era única, que eu ganhei depois de oito anos de casada pensando que não ia ter mais filhos. Quando a Rosana nasceu, eu tinha 30 anos. Naquela época, era gravidez de risco.

Quando cheguei, o embaixador Paschoal Carlos Magno estava aqui e, na ocasião, me convidou para assistir a uma apresentação de dança. Em determinado momento, ele disse “Lenira, você podia vir lecionar aqui”. A diretora da Cultura Francesa estava junto conosco e disse “vem, dona Lenira, que nós também te apoiamos”. Eu disse que eu estava tão bem onde estava, que iria pensar. Quando cheguei no Rio de volta, o Paschoal estava lá e voltou a falar no assunto – “É uma boa, hein, teus pais estão lá...”. Tanto ele insistiu que eu resolvi fazer assim: eu vinha uma vez por semana para dar aula em uma escola que tinha aqui perto.

Meu irmão era diretor da Escola Técnica e visitava quase todas as escolas. Ele disse “você pode começar a dar aula lá no colégio”, e foi aí que eu comecei a dar aula sábado numa sala lá do Colégio Ângela de Brienza, que nós transformamos numa provisória sala de ballet. Tinha umas 12 ou 15 alunas. Até que começou a ficar pequeno o espaço.


Em que momento decidiu ficar de vez aqui?


Eu fiquei uns dois ou três meses vindo para dar aula e voltava para o Rio, o que era muito complicado porque tinha a Rosana pequenininha, e eu tinha que trazê-la porque ela mamava. Depois, eu passei para o Parque Infantil Maria Queiroz de Lindenberg, onde funciona a academia até hoje. Falei com a diretora do parque, ela me cedeu um salão e passei a dar aula lá, até que eu disse “sabe do que mais, eu vou mudar pro lado de cá, porque essa coisa de ir e vir não vai dar certo”. Tive que arranjar pessoas para me substituir porque eu tinha quatro cursos no Rio, consegui e vim com a Rosana, que ainda não tinha nem um ano. Até hoje estou aqui, há cinqüenta e poucos anos.


Não havia escolas de ballet aqui, na época. A adesão das alunas foi rápida?


Eu comecei a ter mais alunas. Veio a tal da “Karina” no cinema, que era um filme de uma bailarina, aí fiquei abarrotada de aluna, não sabia mais onde botar aluna porque todo mundo que viu o filme queria ser bailarina. Depois, desistiu porque era aquele fogo de palha, aquela empolgação, até que vai peneirando e só fica quem gosta mesmo.

Mas, como naquele tempo eu era única, a procura foi aumentando. Depois, apareceu uma academia em Vila Velha, que também existe até hoje, e, de vez em quando, a gente combinava de ir lá dançar.


A senhora, então, quando veio para cá, não tinha noção do que iria acontecer; não havia muitos planos?


Foi se desenvolvendo naturalmente, eu não fiz nada assim de extraordinário. Lógico, tive as meninas que assumiram a divulgação na televisão, divulgação no jornal, os repórteres vinham entrevistar a gente, essa divulgação normal de tudo que surge em qualquer cidade.

E Vitória, para mim, é uma coisa gostosa. Aqui era só residencial, era linda, gostosa, maravilhosa, era árvore que tinha flor que era a coisa mais linda que você pode imaginar. De a gente parar e ficar olhando. Eu, que vinha do Rio, daquela selva de pedra, me encantei.


A cidade não estava preparada para ter apresentações de ballet, não havia estrutura. Como foi esse processo de abertura de espaço?


Depois de certo tempo, as alunas mais adiantadas queriam dançar mais. Elas dançavam uma vez por ano e olhe lá, porque não tinha nem teatro. O Theatro Carlos Gomes era um cinema que era só poeira. Tinha cada rato lá dentro... Era um horror o teatro. Aquele teatro que está hoje lá, quem pagou o começo da reforma fomos nós. Tantas vezes fomos dançar lá... E eu fazia de propósito, apresentava as meninas, convidava desde governador, prefeito, botava todo mundo lá dentro para eles verem o estado do teatro, porque dava vontade de chorar. Ver aquele teatro lindo morrendo aos poucos. Todo quebrado, as cadeiras a gente tinha que consertar, tinha que lavar para o povo sentar. A gente é que tinha que limpar. E havia um piano lá que a pessoa responsável queria deixar no palco e o palco era pequeno, ela não podia deixar o piano no palco para dançar. Aí eu botava lá no fundo da coxia e brigava pra burro. Eu e ela brigamos o tempo todo (risos). Eu ia nas floriculturas, pedindo para botar flores no palco para melhorar, porque estava uma coisa horrível. E assim foi a luta até que conseguimos inaugurar a reforma.

Depois, eles não queriam o ballet de jeito nenhum para a inauguração. Mas quando eu quero, eu quero, e fui ao governador, que me prometeu que o ballet inauguraria o teatro. Realmente, ele lutou com o cara do teatro, dizendo que já tinha dado sua palavra para mim. Tanto que eles não fizeram nem programa, de tão brabos que ficaram. Meu marido fez todo o rascunho do programa, deu para eles imprimirem – tu imprimiste? Nem eles! Ficamos sem programa. Não existe o programa da inauguração do teatro!


Essa apresentação já foi com o Grupo Experimental de Dança do Espírito Santo, que a senhora chegou a formar?


Não, aí foi a escola toda. O Grupo Experimental foi depois disso, quando o teatro já estava usável, que aí nós fizemos um grupo, fomos ao Rio dançar na apresentação da Associação de Dança no Rio. Era formado por diversas alunas minhas das mais adiantadas. Eram umas 8 ou 10 meninas.


E elas chegaram a se profissionalizar?


Não. Todo mundo se diz profissional, mas eu tive duas no começo, e umas quatro ou cinco nesses anos todos. Para ser profissional de ballet mesmo, você tem que amar a dança, mas amar assim... eu não deixo a minha dança nem pelo meu namorado que eu mais gosto. Isso é muito difícil você conseguir aqui. Eu tive algumas alunas que fariam isso, só que os pais foram cortando porque não queriam. Foram poucas, mas que seriam grandes bailarinas, se tivessem continuado. Eu vejo todo mundo dizendo que dançar bem, muita gente dança, mas chegar a ser uma profissional, dedicada de alma àquilo, não é fácil, e eu digo de coração: não é fácil.

Não é para todo mundo, não é uma coisa que se faz “ah tem a fulaninha dançando, vem, vai ser profissional”. Não adianta, ballet é uma coisa que sacrifica muito, exige muito, ele dói. Ele não é gostoso. Ele dói o pé, as costas, o cansaço dói... Para ser profissional, são três, quatro horas por dia, não é fazer uma hora, meia hora. Então, para ser profissional, como em qualquer profissão, ou você se dedica ou você vai ser um péssimo profissional, ou não vai ser. Não existe meio termo para profissional. Eu acho que em profissão nenhuma.


A senhora também promoveu alguns festivais, como o Festival Capixaba de Ballet e o Festival Lenira Borges Ballet Studio. Qual era a importância desses festivais naquele período?


Para as meninas, foi muito importante e para a escola também porque divulgou o trabalho. Muito pai não sabia nem o que era dança. Me perguntavam: “Dona Lenira, me explica o que é a dança?”. Agora, eu te pergunto, como se explica o que é a dança? Você pode explicar, falando, o que é a dança? Aí eu disse, olha, sabe de uma coisa, eu não vou te explicar, vou apresentar uns filmes para projetar para vocês verem o que é dança. E realmente foi o que eu fiz. Eu fui ao Rio, falei com o Paschoal, que era embaixador, e ele conseguiu com a embaixada alemã, a inglesa e a russa alguns filmes maravilhosos que eu projetei na Escola Técnica, e os pais foram ver o que era ballet.

Pra eles, ballet era uma dança, mas como vai dançar? Era muito limitado o conhecimento – não digo de todos; um ou outro conhecia, mas a maioria não sabia o que era o ballet.


Como eram as apresentações, além dos filmes?


Eu passava os filmes para eles entenderem o que era ballet e apresentava as alunas, dentro da medida do possível. Primeiro, eu coreografei, depois, à medida que fui desenvolvendo, arranjava coreógrafos – Renato Magalhães, que era o primeiro bailarino do Teatro Municipal e coreógrafo há muitos anos; tive coreógrafo de jazz, de moderno, tive um bailarino americano que veio pra cá, fui procurando tudo o que havia de dança, trouxe a Mercedes Baptista, que fez Afro. Tudo o que eu podia proporcionar a elas eu proporcionava, porque eu sabia que era o único jeito de tomarem conhecimento em outras danças, outros estilos. Elas faziam aulas clássicas, mas conheciam tudo isso porque tinham que fazer algumas aulas para entender o que os coreógrafos queriam.


O que a fez ser uma boa professora?


Eu acho que foi porque eu transmitia aquilo que eu recebia da minha professora, porque eu não era uma professora boazinha, era muito exigente. Queria tudo perfeito, ordem, disciplina, tudo isso eu exigia dentro da minha sala. Quando eu não conseguia, ia no grito, mas ia. Porque eu era conhecida por isso também. Pai de aluna mexia comigo “dona Lenira, lá da esquina eu ouço seus gritos”. Eu dizia “que bom! Se você ouve de lá, a turma toda deve me ouvir aqui”.

Eu acho que qualquer coisa que a gente se dispõe a fazer, ou faz bem feito ou não faz. Então, para você ter uma aula boa, bem feita, tem que haver disciplina. Nunca uma aula de dança pode ser feita com a indisciplina porque não dá. A própria técnica da dança é disciplinada. Tanto ela endireita como entorta. Se for indisciplinada, pode deixar você para o resto da vida dolorido; mexe com todo o físico do aluno, inclusive com a coluna, o pé, o braço, tudo, então, ou ela dá uma aula muito boa, ou não dá.


A senhora sempre fez dança por amor?


A dança, primeiro, eu fiz por prazer, depois eu fiz por necessidade, porque tinha que sobreviver, e, depois, eu me apaixonei por ela. Me apaixonei porque foi o que me deu meio de viver, me sustentou, eu estudei a fundo, me aprofundei, aí se tornou minha vida. Aí o negócio mudou. Enquanto era só para me distrair, era uma coisa, depois que passou a ser profissão, foi outra.

A dança me conquistou. Foi o contrário. Em vez de eu conquistar a dança, a dança me conquistou. Não sei se foi a dança, se foram os alunos, se foi a dedicação, se foram as dificuldades, eu não sei te dizer o que foi. Só sei que, no fim, eu amava a dança. E amo até hoje.




Quer conhecer um pouco mais sobre a vida e a carreira de Lenira Borges? Acesse a biografia da artista escrita por Inês Bogéa, disponível no Banco de Textos do blog, ou diretamente neste link.



Um comentário: