A coreógrafa e diretora Mítzi Marzzuti fala sobre sua carreira, as propostas e os desafios de sua companhia
Mítzi
Mendonça (ou Marzzuti, como assina seus trabalhos) não se sentia muito
confortável nas aulas de Ballet na infância. Ainda que fosse apaixonada pela dança e pela
música, se achava pesada e grande demais para o que o Clássico lhe exigia. Foi no
Jazz que se encontrou e descobriu o universo que gostaria de explorar com mais
liberdade. Estudou dentro e fora do país, ampliou seus conhecimentos e fundou,
ao lado de sua irmã gêmea, Ingrid Mendonça, o Conservatório de Dança, que, por
28 anos, formou bailarinos no Estado. Sempre muito ativa, a artista criou a Cia
de Dança Mítzi Marzzuti, que celebra trinta anos de existência em 2016 e foi
precursora da Dança Contemporânea no Espírito Santo, assim como do movimento
profissional da dança em terras capixabas. Além de coreografar e dirigir a
companhia, Mítzi costuma buscar o intercâmbio com coreógrafos convidados, que
desenvolvem oficinas e participam de montagens com seus bailarinos. Ao longo
dos anos, o grupo já recebeu diversos profissionais, como Ciro Barcellos (RJ),
Victor Navarro (Espanha), Sylvio Dufrayer (RJ), Renato Vieira (RJ), Suely
Machado (BH), Mário Nascimento (BH), Claudia Palma (SP), Sandro Borelli (SP),
Alex Neoral (RJ), Ingrid Mendonça (ES), entre outros, e percorreu diversas
cidades com apresentações em importantes eventos e festivais de dança pelo
Brasil.
Confira
a entrevista!
DNES: Como você começou a se interessar pela dança e chegou a se profissionalizar?
Mítzi - Minha
mãe é que tinha esse sonho da dança. Aquela coisa das duas filhinhas gêmeas fazendo
ballet. Eu sempre fui a mais grandona, mais pesada, minha irmã era magrinha,
tinha muita facilidade de subir na ponta, era a primeira bailarina de Lenira
[Borges]. Era linda! Eu só comecei a me envolver com a dança depois, quando
chegou aqui em Vitória a Denize Marques com o jazz, e foi a Denize que me deu
oportunidade de iniciar minha carreira como professora de dança e me fez
escolher a dança como profissão. Tive também muita sorte em ter uma mãe e um pai
que sempre apostaram e investiram muito nessa questão artística. Minha vida foi
toda voltada para a dança, a tal ponto que me inspirou num espetáculo sobre a
nossa vida, “Catarse”, que fala sobre quem foi mamãe, por que nós somos assim tão
apaixonadas por essa arte da dança. Mamãe dava aula de dança de salão, foi
pioneira aqui no Estado, meus tios tinham discotecas no porão das casas deles, sabiam
tudo de óperas e teatro, filmes de Hollywood, então, eu vivi nessa família
voltada para a arte. Eu e Ingrid estudamos música, instrumentos, violão, violino,
eu estudei 12 anos de piano, mamãe nos colocava para fazer tudo quanto era tipo
de arte, pintura e todo tipo de dança, afro, dança moderna, jazz, ballet etc
(contemporâneo, na época, não tinha). Nossas férias eram para fazer curso e
dançar.
Me
descobri mais no jazz do que no clássico, porque o clássico precisa de um
biotipo que não é o meu, minha estrutura não era para clássico, então eu sofria
muito, eu era muito pesada, meus pés ficavam muito machucados, eu quase morria
de dor, e não tinha homem para dançar comigo, eles me odiavam! (risos). Tenho a
mim como exemplo para as pessoas que se sentem fora do padrão físico e sou
feliz por não ter desistido da dança. Entendi que minha “onda” na época era
jazz. Fui solista da Denize Marques, que acreditou muito em mim, eu tinha entre
17 e 18 anos. Foi aí que comecei a investir no jazz, fui para o Rio, fiz curso
com a Marly Tavares e o Lennie Dale, que, na época, eram os “ban ban bans” da
dança aqui no Brasil, e a gente viajava muito, íamos sempre para os Estados
Unidos, Holanda, Londres, sempre estudando dança.
Fiz faculdade de Educação
Física na UFES, mas, quando cheguei no último período, apareceu a oportunidade de ir para Amsterdã, eu larguei a universidade e fui e não quis concluir o curso. Casei,
morei dois anos na Itália. Quando voltei para o Brasil, já pensava em fundar a
minha companhia. Mas, antes disso tudo, em 1979, meus pais abriram uma escola
para mim e minha irmã, se chamava Conservatório de Dança, e nós ficamos 28 anos
com a escola. Juntas, fundamos o primeiro grupo de dança, porque, naquela
época, só havia grupo de escolas, das alunas adiantadas, mas eram todas
amadoras, eles não ofereciam uma oportunidade de os bailarinos serem tratados
como profissionais. Então, o primeiro grupo que surgiu foi o Grupo Somas, fundado
por mim e minha irmã com as alunas mais adiantadas da nossa escola. Toda vez
que dançavam, a gente pagava um cachê, e começou essa coisa de buscar o
reconhecimento e tratar os bailarinos como profissionais. Depois, Ingrid ficou
com a companhia dela e eu fiquei com a minha, até hoje!
Desde
o início, eu investi muito na diversidade, nunca gostei de ser a única
coreógrafa na companhia. Sempre acreditei que, quanto mais informação a
companhia recebesse, mais eles teriam facilidade de entendimento, mais aberturas,
e, atualmente, estamos fazendo 30 anos de companhia. Fizemos mais de 38
espetáculos, sendo que mais de 25 foram de coreógrafos convidados, então, a
gente tem uma diversidade muito grande no repertório que é muito legal. Quem
chega para trabalhar com meus bailarinos sente essa capacidade de assimilar
vertentes distintas.
Como foi sendo construída a pesquisa da companhia?
A
pesquisa foi sempre com base na diversidade, eu convidando coreógrafos e
professores com quem me identificava, e fomos construindo um discurso que não
era, por nada, único nem hermético. Sempre gostei de receber coisas novas e
acreditar numa busca sem almejar chegar a algum lugar. Mas nunca parar de
buscar. Isso nunca! Tenho muita curiosidade em entender o momento de cada
coreógrafo, as formas de criar e de onde surgem a ideia e o movimento. Com esse
meu estudo, atualmente, dou oficina de pesquisa do movimento. Acabei de chegar
de uma circulação nacional com a companhia e ministrei essa oficina em todas as
cidades por que passamos, e foi um sucesso! Eu adoro dar essa oficina, é muito
interessante o que se consegue das pessoas, e elas ficam muito felizes e
entendendo melhor essa dança, que tem início na cabeça e, depois, se conecta com
o coração para, então, utilizar o corpo. Acredito que sempre há coisas novas para
aprender e que existem muitas pessoas fazendo coisas boas para a gente ver.
É parte da história do grupo convidar coreógrafos. Como você elege e faz contato com essas pessoas?
Eu
estou sempre investindo em conhecimento, vendo espetáculos. Quando viajo, estou
sempre dentro de teatro. Nessas, eu me encanto por alguns coreógrafos. Procuro
saber quem é e entro em contato, chamo para vir, vejo se tem possibilidade e é
assim que eu entro em contato com eles.
Foi
assim com Mário Nascimento, Suely Machado, Renato Vieira e com todos os que
foram convidados. Tenho afinidade com todos! Por último, com o Alex Neoral, eu vi
o espetáculo dele com uma companhia dos Estados Unidos na internet e fiquei feliz
quando soube que ele era do Brasil, do Rio de Janeiro, e aí eu entrei em
contato na hora. Já é a segunda vez que ele vem, montou dois espetáculos para a
companhia. Já o Mário Nascimento me fez amar a dança contemporânea e eu já o
trouxe sete vezes para coreografar. Agora, ele é meu convidado para o
espetáculo que vai comemorar os trinta anos da companhia. O nome do espetáculo é “PRABHUJEE”
e estamos em fase de montagem, amando tudo!
E como é, geralmente, o processo de criação entre o convidado e o grupo?
Cada
coreógrafo tem uma forma, que eu costumo respeitar sempre. Não os obrigo a
nada, estamos sempre prontos a nos colocar à disposição por inteiro, eu e meus
lindos bailarinos. Porém, com todos, eu tento primeiro uma oficina, assim, dou
oportunidade de se conhecerem. Daí, se inicia a estrutura, qual é a ideia da
pesquisa que vai ser desenvolvida. Uns nos deixam no processo de “estudem” e, depois,
trabalha-se com o que realmente o coreógrafo quer e, assim, ele começa a
introduzir sua pesquisa. Nessa soma, vamos criando movimentos e nos aprofundando
nos conceitos e ideias.
Outros
não trabalham assim, porém, todos são grandes coreógrafos e abrem espaços para a
criação dos bailarinos, se colocam no lugar de diretor cênico e coreográfico. Por
exemplo, o Mário tem um corpo que é preciso mergulhar nesse corpo para
conseguir entender o movimento dele. Porque Mario tem a dança dele. Não tem
técnica de outra linguagem envolvida, é a dança do Mário. Ele é genial, bem
louco, rápido e inusitado. Já o Alex tem outra forma, que também é linda e
interessante e, na maioria das vezes, poética.
O
Sandro Borelli também é muito incrível. Nossa primeira experiência foi louca
demais. Depois de estarmos com a estrutura toda elaborada em pé, ele falou
“agora deita no chão”, então os bailarinos ficaram de barriga pra baixo buscando
fazer, deitados, a movimentação construída em pé e, então, encontrar saídas muito
interessantes.
A
Claudia Palma também é demais! Nos trouxe a questão da instabilidade, desse
corpo nosso no mundo contemporâneo que se aproxima da queda, então, o tempo
inteiro, seu corpo tinha que estar perto do chão, mas você não podia cair. Muito
difícil para quem executa, e lindo demais!
Não
posso deixar de falar da Ingrid, minha irmã, que já assinou algumas
coreografias para a companhia, e que sempre leva sua pesquisa de máscaras e
literatura, rica e consistente, para os bailarinos, que a admiram muito.
São
grandes coreógrafos! Renato Vieira, genial! Concepções cênicas incríveis. O
aprendizado sempre é muito rico! Atualmente, todos os coreógrafos que eu chamo comentam sobre essa aceitação e abertura de meus bailarinos. Não temos preconceitos nem
bloqueios, somos artistas em prol do que se propõe, mas nada é gratuito, pois
não gostamos da vulgaridade. Somos artistas!
E você, Mítzi, como coreógrafa e diretora, quais são seus caminhos?
Preciso
saber “por que fazer o que tenho que fazer” para começar a minha pesquisa. Temos
uma afinidade muito grande na companhia. Eu tenho vários problemas de coluna,
hérnia na cervical, hérnia na lombar, tenho problema no joelho, meu corpo é
superlimitado. Eu faço coreografia sem fazer quase nenhum movimento, eu consigo
me comunicar com eles. Adquiri isso com o passar do tempo e também por ficar
nessa de muitas aulas para sobrevivência, não me aquecia, tinha o trabalho da
companhia e tudo sem preparar o corpo, e fui me machucando, e, atualmente, eu
consigo fazer muito pouco com o meu corpo.
Você acaba desenvolvendo outras habilidades de dialogar, de se expressar...
Várias.
E as pessoas que me veem nessa situação não perdem a esperança de dançar,
porque pensam “se ela está nessa situação e consegue se comunicar, consegue
resultados bons, eu também posso conseguir, por que não?”. Eu acho que isso é
uma esperança que eu levo para as pessoas de que, para dançar, você não tem que
ser nem o sequinho, ou magrinho. E a dança não tem só o bailarino, tem o
coreógrafo, tem o mestre, professor, roteirista, iluminador, tem tanta opção necessária
dentro da dança!
As
pessoas, aqui em Vitória, trabalham muito na formação de bailarino, mas você
não trabalha a pesquisa criativa, como começa, como termina, o que quer falar,
para quê? Traz para mim o que você quer que a gente vai desenvolver. Acho
essencial dar alimento para as respostas corporais e me delicio quando elas são
totalmente diferentes, muitas vezes, eu gosto mais dos que não têm a escola de
dança encruada porque são mais livres.
Em trinta anos, muitos bailarinos já passaram pela companhia?
Muitos...
nossa! Todos eu amei. Saíram, abriram escolas, muitos abriram companhia e desistiram
porque assumir uma companhia aqui nesse Estado é coisa de gente doida. Tem que
ter um amor acima da necessidade financeira, ser muito apaixonado pelo que faz
e muito corajoso. É o que eu falo nas minhas audições. Muita gente já foi fazer
audição interessada na companhia e não ficou porque meu discurso é esse. Eu não
tenho nada para dar para vocês a não ser o que eu sei. Financeiramente, eu
nunca tive um patrocínio, eu não posso dar salários, não posso prometer nada a
vocês a não ser que eu corro atrás, minha vida inteira, para viajar, fazer
apresentações, trazer gente de fora, fazer intercâmbio, investir nisso, dar
figurino, transporte, alimentação, essas coisas eu garanto, agora, salário,
não, porque tem mês que não acontece nada. Tem ano, como este, do jeito que o
Brasil está, que eu fiz doze projetos e só um foi contemplado, então, quer
dizer, é triste para uma companhia de trinta anos isso o que está acontecendo.
Vamos montar um espetáculo, vou vender carro, vou fazer qualquer coisa, mas eu
vou montar. Eu sou doida nesse nível. Eu faço qualquer coisa. Já vendi casa,
telefone, televisão, um monte de coisas por causa da dança. Já perdi muita
coisa material por causa da dança, mas eu não acho que perdi, ao contrário, eu
só ganhei. E se eu sou quem eu sou é graças a tudo o que fiz, ao meu desapego e
ao amor pela dança.
A companhia tem uma sede?
Não
tenho sede. A gente trabalha na Monique Vieira Estação de Dança. A Monique é
uma pessoa que tem a sensibilidade da importância do trabalho que eu faço profissionalmente
pelos bailarinos, e, assim, ela cede a sala sem querer nada em troca. Acho que,
dentro do Espírito Santo, são poucas pessoas que têm essa cabeça. A companhia
já trabalhou muito tempo também no Espaço da Dança, em Itapoã, que também cedeu
a escola pra gente por muitos anos.
Sobre a ocupação de espaços fora os espaços cênicos – partindo do espetáculo “Pérolas Dispersas”, que vocês fizeram no museu da Vale –, queria que você falasse um pouco da relação com o espaço na construção dos espetáculos de dança, qual é sua visão e se existe perspectivas de novas experimentações em outros espaços?
Aconteceu
quando eu fui à Vale para fazer uma produção fotográfica com uma bailarina
junto ao meu marido, ele é fotógrafo. Quando eu cheguei e vi aquela locomotiva
parada pensei “imagina um espetáculo aqui dentro dessa locomotiva...”, e
escrevi o projeto, pensando em desenvolvê-lo. Ele foi contemplado. Na época, o
Alex Neoral estava em contato comigo e veio para desenvolver essa minha ideia. Ficou
lindo! A Vale abraçou as apresentações e todo mundo que viu o espetáculo ficou
encantado. Só que eu fiquei limitada ao espaço, porque acontecia todo dentro de
uma locomotiva, o espetáculo foi todo montado para aquele lugar. Não é um
espetáculo para rua, que eu posso levar para praça, para outro lugar, não, é
para uma locomotiva. Onde é que tem uma locomotiva parada? Então é um
espetáculo que ficou esse tempo todo parado na esperança de aparecer outra
oportunidade de apresentá-lo. Mas é um espetáculo tão lindo que eu resolvi
fazer uma adaptação dele para o palco e o apresentamos este mês, no Aldeia SESC,
e vamos apresentá-lo no Cena Local em julho. Graças a Deus eu tive coragem,
pois eu estava arrasada em pensar que nunca mais iríamos dançá-lo.
Mas foi a primeira vez que vocês experimentaram fora de um espaço cênico?
Não.
A Suely Machado esteve aqui em Vitória e montou “Jogos do Cotidiano”, que
também é lindo e sensível, feito para parques e praças. Dançamos pouco porque,
infelizmente, existe pouca oportunidade de circulação e, então, a companhia
fica sempre nesse processo de montagem, montagem, montagem... Todo ano a gente
monta espetáculo, mas quase não circula, não dá tempo e seria
importante levar esses espetáculos Brasil a fora, pois são lindos!
Fale um pouco sobre os projetos e as ações para a comemoração dos trinta anos.
Já
estamos comemorando! Fizemos uma circulação nacional, passamos por oito cidades
com “Descortinando”, coreografado por Ingrid Mendonça e dirigido por mim.
Participamos do Aldeia SESC e vamos participar do Cena Local. Depois, em outubro,
vamos estrear o “PRABHUJEE”, assinado por Mário Nascimento. A intenção é
apresentar, durante este ano, espetáculos que a companhia possui, para fazer tipo uma
cortina de vertentes, já que cada coreógrafo traz uma coisa, para mostrar a
diversidade que existe dentro da companhia, então levaremos essa diversidade
para todos os palcos que passarmos este ano.
Estou
também com uma proposta de fazer "Companhia de Dança Mítzi Marzzuti Convida", que
é um projeto da companhia com todas as escolas de dança do Espírito Santo. As
escolas levam os espetáculos que concorrem a prêmios nesses concursos, que são
os mais bonitos, que eles montam em festivais, para se apresentar no mesmo dia
em que a companhia se apresenta. É um trabalho também de formação de público
aqui, em Vitória, porque as pessoas que dançam em escolas muitas vezes só veem
espetáculos delas, as mães, os pais assistem às filhas, mas não sabem o que as
outras escolas fazem nem quem tem companhia aqui em Vitória.
Qual é sua percepção da dança, depois de tantos anos de experiência?

O que falta ao cenário da dança local?
Eu
acho que sempre foi tão pouco o que acontece em Vitória, o que circula dentro da
cidade, como apoio de dança. Falta mesmo comprometimento não só do Estado
(porque eu acho que a grana não tem que partir só dalí), mas me incomoda saber
que, em trinta anos, não existiu, na história da dança do Espírito Santo, o apoio
de uma empresa particular sem que seja através de leis de incentivo.
Então,
dentro do Estado, tem pouco apoio para que a dança aconteça, e fica todo mundo
em torno de um prêmio. E, quando uma pessoa recebe, fica aquela coisa... “de
novo ela?”. Se tivesse mais verba, com certeza, o número de contemplados seria
maior e não teria esse questionamento. Então quem é contemplado não é culpado,
e sim a quantidade de verba que se tem para a cultura.
Acompanhe as atividades da Cia de Dança Mítzi Marzzuti em sua página.
Nenhum comentário:
Postar um comentário