Marcelo Ferreira fala sobre sua carreira em entrevista para o Dança no ES
Provocativo e multifacetado, o ator, bailarino e performer Marcelo Ferreira passeia por diversos campos da arte, em mais de 30 anos de carreira. Em seu trabalho, a linha entre a dança, o teatro e as artes visuais sempre foi permeável. Diante de linguagens que se misturam, o artista tem bem definido seu propósito com o ofício. Sabe o que quer e, principalmente, o que não quer – ser panfletário, cafona, literal e vazio. Durante as décadas de 80 e 90, integrou o grupo Neo-Iaô, um dos precursores da dança contemporânea no Estado e fruto de uma parceria com Magno Godoy, com quem dividiu seu amor pela arte e suas criações por mais (e para além) de 15 anos de existência da companhia, cujas principais influências eram o Butoh, o Expressionismo e o Candomblé. Já no final dos anos 90, fundou a Cia. Teatro Urgente, com a qual trabalha hoje como diretor e intérprete, com textos próprios, em sua maioria, mesmo quando baseados ou inspirados em autores conhecidos, a exemplo de Beckett, cuja obra foi ponto de partida para alguns de seus espetáculos, incluindo o mais recente, “Plugged” (montado a partir de “Dias Felizes”), com estreia prevista para abril deste ano. Os trabalhos da Urgente também são conhecidos pela estética marcante, pelas múltiplas referências e pelo forte teor político, com ácidas críticas à sociedade contemporânea e muita ironia. Inconformado por natureza, Marcelo acredita ser esta característica o grande disparador de suas criações.
Confira a entrevista para o Dança no ES!
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Foto: Jussara Martins |
DNES: Como começou seu interesse pela dança e pelo teatro e como surgiu a Companhia Neo-Iaô?
Marcelo - Tudo começou na Ufes. Entrei em
1978 para o curso de Comunicação e, em 79, fui fazer uma matéria chamada "Cultura Brasileira", e Magno Godoy entrou na sala. Ele já fazia teatro, era
um diretor premiado. Na Ufes, nos anos 70, o MEC mandava verba para a
universidade, então, cada centro tinha um grupo de teatro, e tinha aquela
galera que se reunia nos intervalos. Criamos um grupo que se chamava "BLULULULULUM" e montamos uma peça que falava da nossa história na universidade, do trote até
a formatura, que se chamava "Universus Sancty dy Spirits Federalis". Entramos na mostra
de teatro, ganhamos melhor espetáculo e eu ganhei melhor ator. Magno já fazia
ballet com a Lenira Borges e começou a dar aula para mim, os primeiros
passinhos. Eu entrei de cabeça na academia da Mitzi Marzzuti e Ingrid Mendonça.
Fazia ballet, jazz, ginástica com as mulheres – porque só tinha mulher na
academia, quase não tinha homem. A referência, para nós, era o Ballet Stagium,
na época.
Eu e Magno nos mudamos para uma
casa na Vila Rubim, no alto do Morro do Quadro, e lá era nosso estúdio, a gente
só não levava público, era só para trabalhar. Então, tinha meu quarto, o dele,
uma sala de trabalho, o banheiro-camarim e, embaixo, tinha uma biblioteca. Era uma escola nossa, que quem frequentava era eu, Magno,
Carlos Délio, que hoje é Secretário de Cultura de Cariacica, e Paulo Fernandes,
da Cia. Enki, que trabalhava com a gente. Éramos os quatro na Cia. Neo-Iaô, em
1986.
Vocês tinham muita influência do Butoh. Como foi sendo construída a linha de pesquisa do grupo?
O Magno tinha padrinhos
japoneses, então, ele sempre foi muito ligado à cultura nipônica, pintava,
fazia leques, máscaras... Em
86, Kazuo Ohno veio para o Brasil pela primeira vez. Ele estava com 80 anos,
começou a dançar com 60. Com 70 e tantos, começou a aparecer no mundo. Fomos
eu, Magno e outro amigo para assisti-lo. Demos sorte porque, no Rio, na
sexta-feira, tinha apresentação de teatro Kabuki, e, no outro dia, era Butoh em
São Paulo. Na ocasião, eu falei que, no final de semana, nós vimos a cultura
japonesa do medieval ao ultramoderno. Tem coisa que você precisa ver, não tem
como ler, e é a experiência da sua vida – e essa foi. O Kazuo Ohno foi a coisa
mais forte que eu vi na vida, não tem outro.
Nessa época, a gente estava em
Vitória pesquisando uma linguagem nova, Magno já fazia dança, começou a dar
aula para a gente e eu estava fazendo a academia. Fazíamos laboratório, pesquisávamos
Lacan, Freud, Foucault... Magno, então, pesquisando “História da Loucura”, viu
que o Foucault analisa a história da loucura sob uma tela do Hieronymus Bosch, a “Nau dos Loucos”, que virou tema
do primeiro espetáculo que a gente estreou: “Stultifera Navis”. Foi nesse mesmo
período que a gente foi a são Paulo ver Kazuo Ohno. A gente estava com muita dúvida
do que era aquilo que a gente estava fazendo, era uma sintonia sem saber. Tanto
que, em 86 mesmo, quando estreou Stultifera aqui, foi um marco, porque o Carlos
Gomes virou um navio – os marinheiros desciam lá do terceiro andar, naquelas
escadinhas de corda. A peça foi impactante porque tinha muita coisa nova. A
própria linguagem, o movimento, ninguém entendia aquilo.
Muita cena de nudez, em vez de usar tapa-sexo, a gente usava emplasto... anjos andróginos! Isso foi uma
revolução, não só para aqui como para fora também. Nós fizemos currículo em
alguns dos melhores teatros do Brasil. Circulamos bem, e, numa época que não
tinha lei de incentivo, a gente viajava muito mais do que hoje. A Ufes apoiou
muito a gente, na época. Fomos convidados para a mostra de Butoh em São Paulo e
Brasília, com vários bailarinos do Japão, da Alemanha...
E o Neo-Iaô tinha uma coisa muito
própria por conta dessa questão que misturava o Candomblé com a cultura
japonesa. Nós fomos pesquisar que, no Brasil, o ritual primitivo mais forte em
termos de história era o Candomblé. Porque a origem da dança vem de rituais, as
religiões, as giras. Então, Neo-Iaô significa os “novos iniciados”, já que o Iaô
é o iniciado do Candomblé, quem se inicia, e a gente raspava a cabeça também. No
Butoh, muitos também trabalhavam com a cabeça raspada por causa da Segunda Guerra,
da bomba atômica, além de a dança ser muito retorcida, deformada, que tem a ver
com essa época.
Essa experiência você levou para a Cia. Teatro Urgente? Como surgiu o grupo?
A Urgente, agora, virou
outra coisa, onde eu mantenho a estética do Butoh, do Neo-Iaô, eu uso em
algumas cenas, mas não é o tempo inteiro, tenho outras referências. A companhia
começou quando eu fui convidado para dar aula de Expressão Corporal na Faesa,
em 1997. Os alunos começaram a querer fazer teatro, saí pesquisando e achei o Beckett. Montamos “Fim de
Partida”, que foi a primeira peça como Urgente.
Você mescla muitas referências, incluindo filmes e outras obras de arte. Como você classifica ou descreve seu trabalho?
Quando o Magno foi para Itaúnas e
eu fiquei aqui, voltei a trabalhar mais com teatro, porque, até então, era
dança, dança-teatro, mas não tinha texto, e eu sempre tive vontade de trabalhar
com teatro contemporâneo. Gostava, e gosto muito ainda, da Bia Lessa, do Gerald
Thomas, do Bob Wilson, que são minhas referências.
Fiz uma trilogia em homenagem ao
cinema, com “Nosferatu”, “Metropolis” e “Fahrenheit, 451”. Já “Crash” misturou
tudo mesmo, então, é meio performance, meio instalação de vídeo, é teatro
também, tem uma cena que poderia ser dança, que eu até eliminei para o Festival
de Monólogos. Sempre tem uma cena ou outra que eu faço alguma movimentação com
referência ao Butoh, ao Iaô, ao Expressionismo, mas não em todo trabalho. Em
“Mefisto”, tem uma cena parada que é só texto em off, uma outra, do pacto de
sangue, com texto em alemão e movimentos de dança do Neo-Iaô, do
Expressionismo. Também uso cenas estáticas, só de objeto com texto em off, ou
só uma trilha rolando. Quando fiz “Um Corpo que Cai”, a última cena era para
ser vista numa galeria, porque é um meteoro que cai em cima da bailarina no
final e eu queria que o público entrasse, visse aquilo e ficasse olhando um
tempo. Não tem trilha, não tem nada. É o teatro pós-dramático, que aparece na
teoria do Hans-Thies Lehmann,
e a referência dele é Bob Wilson, que é um teatro de imagens, justamente onde eu
acho que meu trabalho se encaixa.
Além de referências ao Butoh, como seu trabalho dialoga com a dança? O que te interessa nesse campo?
A dança, no meu trabalho, tem a
ver com algo muito inconsciente, muito subjetivo, são gestos exagerados, porque
querem provocar um estilo, uma diferença, por isso, exagera, no caso do Expressionismo,
mas ela é muito interior. O bailarino tem que ser uma pessoa que trabalha a
presença, tem que ter um carisma para estar no palco. Eu já me cansei dessa
dança que se repete, bonita, do corpo, é lindo, tudo certo, tudo igual, mas já
cansei, não me agrada esse tipo de trabalho mais. Me interessa quando você tem
alguém se movimentando, com uma coisa muito própria que a pessoa buscou ali. Já
dei aula de coreografia na Fafi, mas eu nunca coreografei. Nas minhas aulas,
passava a gramática de movimentos possíveis para os alunos e depois falava “agora,
vamos trabalhar”. Às vezes, até marcava o começo, mas a continuidade era a
pessoa quem dava.
Além de estético, seu trabalho é muito político. Essas são duas marcas fortes no que você faz?
A estética vem do que eu aprendi
com o Magno, de ver obra de arte. E também porque eu sempre gostei dos
espetáculos visuais, que são bonitos, independentemente do conteúdo, que são
interessantes visualmente. Mas nós sempre fomos artistas de Comunicação,
jornalistas, então, o lado político pesou muito, e a gente veio da época da
ditadura.

Também tenho o cuidado de não ser
panfletário, não ficar gritando palavra de ordem, não ser literal demais.
É mais para provocar. E é o discurso que eu fazia e agora faço menos porque a gente tem que ser recebido. Eu não quero porta fechando na minha cara
mais, já aconteceu demais isso.
E humor também, que sempre tem.
Ironia, sarcasmo sempre, porque a visão que eu tenho do mundo é essa. Meu riso
é de hiena, que está rindo da desgraça, aquela coisa maldita, aquele deboche. E
o Magno tinha muito disso também, a gente se dava bem por conta disso. A gente
ria muito das coisas.
Diante da variedade de referências, você se preocupa em ser “acessível”? Não estou dizendo que o público precise identificar tudo, nem que a arte tenha que ser totalmente “digerível”, mas qual é sua opinião sobre o diálogo com a plateia, nesse sentido?
Eu não me preocupo com isso. Me
preocupo em ter um visual, porque, muitas vezes, a informação passa pela
estética, por aquilo que você está vendo, o que já é uma informação. Quanto ao
conteúdo, não me preocupo.
Fiz o “Mefisto” com texto em
alemão. Em Venda Nova, perguntaram “por que vocês usam estrangeirismos?”. Eu respondi
que não tenho essa preocupação, porque, nesse caso, o alemão entrou porque a
peça é de origem alemã e é quase como uma música. Mas, se você não sabe alemão,
não leu Goethe, você não vai chegar até isso, alguns vão questionar, vão ficar
indignados porque não sabem, alguma coisa vai ter de informação para eles ali. E
a arte é para provocar isso mesmo, é o pensamento da dúvida, é aquilo que você
não sabe, você está indo lá para aprender também, então, essa é uma função da
arte também, não é fazer você ficar o mesmo, é você mudar alguma coisa, mesmo
que odeie e não volte nunca mais para ver aquilo. Lógico que eu quero que fique
interessante, mas, se vai enjoar ou não, é o de menos. Eu não faço com o olho
do público, eu faço as peças que eu gostaria de ver e que não vêm a Vitória.
Você não tem essa preocupação na criação, mas, em compensação, gosta de poder falar sobre ela...
Com isso, me preocupo sim. Porque
aí é formação de público. A obra não, não preciso trazer para a linguagem
tati-bi-tati, mas, depois, faço um discurso longo, às vezes, que envolve tudo,
e vou, bem facilmente, fazendo eles entenderem que aquilo não é tão complicado
e que é uma possibilidade que a pessoa tem de trabalhar seu cérebro, de sair do
lugar-comum. Então, essa preocupação eu tenho, não na obra, mas, depois, na
justificativa dela. Tudo tem um motivo. Mas, na hora em que estou criando, eu
evito isso. Não quero ser palatável, não quero ser explícito. E quem está
acostumado com essa linguagem acha tudo muito tranquilo, gosta e identifica.
Minha preocupação é não ser careta, cafona, déjà
vu.
Como você avalia o cenário local hoje, tanto da dança quanto do teatro?
Com os grupos daqui, aconteceu o
seguinte: edital. Lei é a única política que existe no momento. Também há a
falta de valor que se dá ao histórico. Que projeto específico existe para quem
está aqui há muito tempo e continua produzindo? Não tem nada. Tem uma temporada
para oferecer para esse grupo de dois finais de semana no Carlos Gomes, por
exemplo? Esses grupos vão formar plateia, porque são bons, eles podem dar
oficinas também durante a temporada. Por serem mais conhecidos, vão puxar os
outros. Mas hoje não, tudo tem que ser para quem está começando. É legal, acho
que tem que ter, eu fui jovem e não tive apoio nenhum. Tudo tem que começar,
mas o começo está sendo muito mais valorizado agora do que quem já está
trabalhando. Tem de haver uma balança nisso aí.
Acho que, na política cultural,
você tem que ter uma difusão, que é um festival, alguma coisa boa, de nível.
Temporada é fundamental, você tem que abrir para os grupos se apresentarem no
Carlos Gomes várias vezes, com ajuda de custo para colaborar com a bilheteria,
como o Sesc faz com o Cena Local. Só que é só uma vez por ano, então não há uma
continuidade.
O que poderá mudar a mentalidade
é quando houver mais artistas estudantes, artistas que estudam mesmo. É
importante artista estar sabendo das coisas, ter opinião própria, saber falar,
escrever. E, no mundo em que a gente vive, arte é uma arma do bem, é saneamento
básico.
Você criou o Festival Vitória-Brasil de Dança. Como foi isso?
Eu queria um festival, em Vitória,
de dança contemporânea porque nós estávamos em evidência aqui, Neo-Iaô, tudo
surgindo... Foi em 1991 a primeira edição. E o primeiro foi em homenagem a Luz
del Fuego, porque eu queria pesquisar um ícone da dança no Espírito Santo. Trouxemos
o Denilton Gomes, que era o auge do Butoh em São Paulo e ninguém aqui o conhecia;
o Antônio Nóbrega, que estava começando o trabalho dele e ninguém sabia. Com o
Antônio Nóbrega, o público gritava “eu quero dança!”. O Ballet Stagium abriu o
festival, críticos vieram.
São coisas que aconteceram aqui
no Espírito Santo e que foram importantes, mas que muitas pessoas não sabem,
nós não temos um histórico disso, e, por não haver esse histórico, os gestores
culturais também não sabem, então, eles vão começar tudo do zero, fazer
projetos da cabeça deles, inventar uma coisa que já foi inventada, ou não vão
fazer nada, como estão fazendo. Porque edital é lavar as mãos, né?
Com a Cia. Teatro Urgente, o que está preparando para este ano?
“Plugged” é a peça nova, que fala
de uma mulher conectada o tempo inteiro no smartphone, que será interpretada
pela Ivny Matos, com minha direção. É “Dias Felizes”, do Beckett, que estou
adaptando, então, virou “Plugged – ensaio sobre dias felizes”. Não queria pegar
o Beckett e montar igualzinho. “Dias Felizes” é a terceira peça da trilogia do
Beckett das mais famosas, e eu já montei as duas – “Godot” e “Fim de Partida”.
Essa, a Fernanda Montenegro já montou. Na primeira cena, ela está enterrada até
a cintura, uma montanha no deserto, e, no segundo ato, ela está até o pescoço.
Acho que, hoje, a pessoa vive
presa a aparelhos, daí surgiu a metáfora. Resolvemos fazer isso, a pessoa numa
cadeira de tortura, sentada ali com o telefonezinho, uma torrezinha do lado com
tomadas, que vai estar ligada com carregadores, e, na outra mesa, do lado, uma
valise, onde ela tem um revólver e um batom. No primeiro ato, a personagem está
ali, só no aparelho, e, no segundo ato, ela só aparece em vídeo, em close. Essa
peça é para abril deste ano. Na verdade, eu vou fazer uma trilogia. Já que fiz
o “Crash – ensaio sobre a falência”, vou fazer o “Plugged – ensaio sobre dias
felizes”, e vai ter o terceiro, que eu ainda não sei sobre o quê.
Depois da estreia, tenho a Mostra
Teatro Urgente, que é o meu projeto para a Secult que ficou de suplente. Quero
mostrar quatro espetáculos e vou dar uma oficina para formar atores para o meu
estilo de trabalho.
Este ano, também começarei o Mestrado de Artes na Ufes, no qual defenderei um projeto que trata do trabalho artístico da companhia, com o título "No Interior da Caixa Preta: Artes Visuais e Audiovisuais no Discurso da Cia. Teatro Urgente". Será uma forma de deixar registrada a memória do meu trabalho e do Magno.
Este ano, também começarei o Mestrado de Artes na Ufes, no qual defenderei um projeto que trata do trabalho artístico da companhia, com o título "No Interior da Caixa Preta: Artes Visuais e Audiovisuais no Discurso da Cia. Teatro Urgente". Será uma forma de deixar registrada a memória do meu trabalho e do Magno.
Acompanhe mais informações sobre a Cia. Teatro Urgente na página do Facebook.
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