Elidio Netto é daqueles profissionais que se alimenta fundamentalmente da
troca, do intercâmbio com outros artistas e outras culturas. Nascido em Alegre
e criado em Muniz Freire, no interior do Espírito Santo, o bailarino e
coreógrafo se abriu para o mundo a partir de sua vinda para a capital nos anos
80, quando iniciou seus estudos de teatro e dança na escola FAFI e se uniu a
Gil Mendes no grupo de dança afro NegraÔ. Profissionalizou-se e teve contato com grandes nomes da dança, como Alexandre Franco (RJ) e Armando
Rios (Cuba), entre outros. Desde 1999, é diretor da Cia. Homem de Dança
Contemporânea, com a qual desenvolve pesquisa permanente e se apresenta pelo
Brasil. Elidio também é professor de dança contemporânea e dança afro contemporânea
e mantém seu olhar atento aos novos talentos, especialmente em comunidades do
interior do Estado, a quem procura incentivar a continuidade do trabalho da dança.
Confira a entrevista com o artista para o Dança no ES!
DNES: Como surgiu seu interesse pela dança e como veio a se profissionalizar?
Elidio - Eu não era bailarino, eu era ator e, no princípio, era
ginasta. Gostava muito dessa questão acrobática. Eu morava no interior, em
Muniz Freire. Lá, a gente terminava o ginásio e ia fazer Agronomia ou
algo assim, e eu não queria nada disso. Eu jogava handball e vim para Vitória, aos 18 anos, com a intenção de continuar praticando algum tipo de esporte ou ir
para a área de artes cênicas. Aqui, conheci uma pessoa que, na época,
coordenava o Centro de Educação Física da Ufes, aí consegui fazer alguns
treinamentos lá. Tinha umas aulas no final de tarde, você podia fazer cavalo,
podia fazer algumas coisas... Eu acabei indo e ficando amigo de Hector, que é
um professor de capoeira. Fiz muita coisa, mas, logo depois, resolvi entrar na
FAFI, onde encontrei Renato Saudino, que foi meu mestre. Entrei para fazer
teatro e fiz por bastante tempo, cheguei a fazer até o último ano do curso de
qualificação profissional, que, na época, não era qualificação ainda, eram
aqueles cursos avulsos. Nesse meio tempo, comecei a fazer produção, fui
trabalhar como produtor de casting de
alguns cinemas. Na época, o cinema no Estado estava bombando. Tive interesse
por iluminação, figurino... E, nesse processo de transição do teatro para a dança,
foi quando conheci o NegraÔ e me identifiquei com a história do grupo, que era
uma galera que já vinha do princípio da dança no Estado – Ariane
Meireles, Renato Santos, Walter Lima... Nessa época, também conheci Mítzi
Marzzuti, Karla Ferreira, a gente foi se encontrando. Eu venho dessa segunda
geração da dança no Estado. Era uma geração que tinha pouquíssimos homens
dançando. Logo em seguida, o Balé da Ilha veio e rompeu com tudo isso quando trouxe os
meninos cubanos, e aí o movimento masculino também aflorou.
Na sua trajetória, você teve contato com diferentes grupos locais...
Sim, foi uma história bem bacana. Eu comecei no NegraÔ,
depois fui dançar no Guará também, passei um tempo no grupo de Carlinha (Carla van den Bergen), a
Quorum. Na primeira montagem da Quorum, eles fizeram uma audição, aí fui eu,
foi Angélica, Gabriel, Aline... A gente passou um período no grupo. Nisso, eu já tinha a Homem também. Eu gostava de fazer tudo. Eu fazia dança o dia
inteiro. Acordava, ia fazer aula em tal lugar, ficava o dia todo fazendo aula
em outro lugar, à noite, ia para a FAFI, ficava até as 22h. Eu vivi muito isso o
tempo todo na minha vida.
E como foi o surgimento da Cia. Homem de Dança?
Nosso processo começou em 1999. O primeiro trabalho da
companhia foi “Antes que Tarde Seja Nunca”, que surgiu comigo e com Marciano
Silva, que hoje está nos Estados Unidos, bem-sucedido lá com uma
companhia. A gente viajou muito o país, fez vários festivais, ganhou vários
prêmios; a companhia viajava muito. Às vezes, a gente
passava o ano mais fora de Vitória do que dentro. A gente vinha para trocar
mala, ou para poder dar uma respirada, ou para pensar em alguma coisa nova. Nessas
viagens, um processo bacana na minha vida foi passar pelo grupo Cena 11 Cia. de
Dança, de Florianópolis (SC). Eu não fiquei, mas tive a oportunidade de ter
ficado, e foi lá que me despertou mais esse interesse pela dança mais agressiva. Eles têm
essa coisa muito forte com o impacto. Voltei para Vitória com essa vontade, e a gente montou “Choque” logo depois. Eu sempre
tive um processo de viajar, buscar informação e agregar para o trabalho da
companhia. E nunca procurar fazer o que era tão comum, dentro de uma linguagem
que é bem nossa mesmo.
Como foi sendo desenvolvido esse processo de pesquisa e como isso aparece no seu trabalho?
Na realidade, desde o início do nosso processo, a gente
vinha buscando encontrar que memória corporal era essa com que a gente
queria trabalhar, e eu não tinha como fugir da minha ancestralidade, tinha que
falar de uma dança contemporânea hoje no Estado feita com uma
linguagem negra. Então, a capoeira, para gente, é um ponto de referência muito
forte; fomos buscar também nas artes marciais, que têm umas referências das
quedas, dos rolamentos. O ballet clássico, de uma forma ou outra, agrega muito
ao nosso trabalho enquanto condição de linha, ao condicionamento físico
também... A gente foi associando várias linguagens técnicas e aprimorando
dentro do folclore americano, que tem foco no Horton e nessas técnicas
americanas também. Horton, para nós, hoje, é uma base muito forte do que
pretendemos trabalhar, então, nossas aulas estão baseadas na colocação do eixo,
na colocação do centro. Aí nós chegamos a esta estrutura de pensamento: “vamos
trabalhar essa ideia corpórea focada nessa dança negra, mas sem a necessidade,
por exemplo, de colocar uma palha”; não quero falar do orixá, eu quero falar da
minha ancestralidade, de como esse corpo negro se move. Eu tenho o Jordan
Fernandes, que é um dos bailarinos mais antigos da companhia, então, a gente
consegue conversar muito sobre isso. Hoje, somos quatro: eu; um de matriz
africana; um que vem das danças urbanas; e Jordan, que já é antigo e vem de uma
estrutura bem parecida com a minha.
Você também trabalha muito com jovens do interior do Estado...
E eu agrego meninos da comunidade. Passei um tempo em
Aracruz trabalhando na comunidade, absorvi muita coisa da questão indígena, do congado
de lá, além disso, trago meninos que dançam (eu trouxe uns quatro, ficaram
morando comigo em Vitória, fizeram FAFI, hoje cada um seguiu um caminho). Acho
que é bacana oportunizar essas pessoas, e elas ajudam também com que eu amplie minha
memória corporal porque, como a gente trabalha com intérprete-criador e não com
frases prontas, é muito interessante descobrir o que o corpo do outro pode me
oferecer. Então, a estrutura do trabalho da companhia está nisso, nessa busca,
nessa pesquisa, nesse olhar, esse olhar que a gente tem para o corpo do
outro... E cada vez isso vai ficando mais forte, cada vez mais a gente vai se estruturando sobre isso.
Em geral, a companhia viaja muito, mesmo fora de temporada. Qual a importância desse intercâmbio com artistas de outros Estados, especialmente a Bahia, para a produção de vocês?
Na Bahia, eu tenho uma relação bacana com Jorge Silva, que
tem uma companhia, a Jorge Silva Cia. de Dança, que já existe em Salvador há 30
anos - uma figura superconceituada, coreografou grandes grupos e grandes bandas
também. Eu o conheço através de Gil Mendes, que teve formação básica em
Salvador toda com ele, dançava muito em rua, em hotel. E ele tem esse
foco no social, na juventude da periferia, o que me atraiu muito. Ele foi para
uma comunidade chamada Cajazeiras, onde conseguiu movimentar uma comunidade
inteira com mais de 300 jovens. Lá eles montam valsa, por exemplo, e não negam
nunca a origem cultural deles. Se tem o canto do axé, da roça, eles levam
aquilo para cena dentro do ballet de uma forma tão sutil que é gostoso de
ver como brincam com isso. Isso foi me encantando e eu comecei a querer trocar
mais com ele. Então, quando eu vou para lá, levo a companhia inteira. Ao mesmo tempo
em que estou no Ballet Castro Alves trocando com outra formação, estou na comunidade
trocando com uma coisa que é bem pessoal, muito interna, não é codificada demais, é espontânea. É legal eu ver o funk, não o funk da bundinha, mas o funk
dançado por uma garota com uma outra linguagem toda articulada. Na verdade, a
gente pode fazer tanta coisa a partir disso, porque é nosso ritmo, está ali no
quadril, mas não precisa ser a bunda o tempo inteiro.
E o intercâmbio para nós é importantíssimo porque nós temos
uma dificuldade grande em Vitória de trocar. Quando estamos em Salvador, nós
vamos para uma escola que funciona como a FAFI. Aqui, eu não tenho acesso à FAFI se quiser ir lá fazer uma aula avulsa, por exemplo. A escola é fechada,
ela não abre para mim, não me dá essa chance. Agora, se eu chegar em Salvador,
ou se você chegar no Terreiro (Contemporâneo de Dança), em Belo Horizonte, você vai entrar e vai fazer
aula. Se a gente quer trabalhar com ballet folclórico da Bahia, vai para lá e
passa uma semana trocando, fazendo aula, entendendo o processo de criação. Se você
quer Castro Alves, está lá, você consegue ter acesso às pessoas e trocar. Aí
facilita muito. Em Belo Horizonte, a gente consegue trocar com a Primeiro Ato,
com os coletivos, que estão sendo criados cada vez mais. Aí você volta para cá
com uma energia de querer trabalhar. Por mais que eu não consiga mostrar meu
trabalho no meu Estado, eu consigo sair daqui, consigo produzir aqui e levar.
Você acredita que as dificuldades dos grupos locais sejam principalmente por falta de incentivo?
Eu acho que o incentivo falta, mas a classe também tem que
se movimentar. A gente tem um sindicato que eu nem sei se ele, de fato, existe.
Não existe uma assembleia, uma reunião, então, não se tem proposta. Por outro
lado, se você também não articula alguma coisa para que exista esse movimento,
ele não vai existir por si só. A gente vai tentando se articular, por exemplo,
você tenta fazer uma mostra, convida alguém, eu tento fazer um encontro no
Museu, convido algumas pessoas, mas só isso também não basta, é pouco porque não conseguimos atingir muita gente e também não temos grana para fazer uma
divulgação maior ou para sustentar a ação por muito tempo. Também existe a
dificuldade das casas de espetáculo, que, para nós, é algo muito sofrido aqui.
Se você entra, por exemplo, num edital do Theatro Carlos Gomes, você pena
porque não pode muita coisa e também não tem a grana para poder pagar a taxa de
locação. E, tirando o Carlos Gomes, que outro espaço a gente tem hoje em
Vitória? São difíceis de acessar, você tem que passar por edital, então, não existe
uma temporada longa. A busca, cada vez mais, é por espaços alternativos. O ruim
do espaço alternativo é que, se você pensa em um trabalho para determinado
espaço, nem todo espaço alternativo tem estrutura para recebê-lo, e você não
consegue atingir seu objetivo. Sempre tem que se pensar em intervenções para
poder fazer alguma coisa naquele espaço, senão você não faz nada. Eu tenho mais
acesso fora daqui para apresentar a companhia do que no meu próprio Estado. O
interior do Estado também está com um movimento legal, mas tem um montão de
casas hoje que está sem estrutura. Em Aracruz, tem um teatro bacana no centro
da cidade, mas ele não tem estrutura nenhuma, não tem um refletor.
Falta criarmos um movimento mais verdadeiro, acho que somos muito individualistas ainda. A gente não pensa no todo. Nós
tínhamos a Prodança, que era uma associação formada por quase dez companhias,
mas se mantiveram egos de alguns, e egos acabam ficando só em egos, não seguram
nada. Mas é um mercado que está crescendo, as academias estão produzindo muita
coisa e está tendo mais variedade também, porque antes a gente tinha o foco:
clássico, moderno e dança de salão, que também tinha uma força muito grande.
Hoje, as danças urbanas vieram, o interior do Estado também tem produzido muito,
tem muita companhia produzindo com variedade de linguagens. Acho que é um
mercado que está aí, e ele precisa ser visto pelos órgãos governamentais, pelos
editais.
A companhia foi uma das selecionadas, recentemente, para um prêmio internacional de residência, o Performing Americas Program – Creative Exchange Residency, oferecido pela organização americana National Performance Network (NPN). Em que consiste esse prêmio e que oportunidades ele oferece?
O prêmio é bacana porque, na verdade, ele vai ajudar a custear
a vinda do coreógrafo convidado para o novo trabalho da companhia, o Augusto
Soledade, que é baiano (embora resida em Miami), é moderno e está fazendo uma
pesquisa dentro da linguagem da dança contemporânea, além de ter um trabalho
muito parecido com o que a gente desenvolve aqui. O prêmio não é para nossa
ida, é para a vinda dele. Na realidade, eu poderia ir, seria eu sozinho, mas,
se eu fosse sozinho, talvez eu agregasse informação só para mim e não para a
montagem do trabalho. Então, eu optei por inverter a situação: trago o cara,
que é apenas um, e vou ampliar o conhecimento da minha companhia e também das
pessoas que tiverem interesse em assistir, em fazer uma aula.
E como será esse novo trabalho e seu processo de criação?
O trabalho que vamos começar a montar agora, também pelo
projeto da Secult, é “Tri”, no qual a gente fala dentro dessa relação da
ancestralidade africana. O trabalho tem foco em três bailarinos, mas a gente
vai fazer em quatro. Com o coreógrafo, já estamos trocando material e eu já vou
avançando a pesquisa de conteúdo, na forma de palavra. A gente seleciona
palavras, elas se tornam vocabulário corporal para nós, aí vamos em busca dessas
palavras dentro do nosso corpo. Eu vou começar a desenvolver essa pesquisa
corporal dentro desse texto que a gente vai discutindo para poder adiantar o
processo de pesquisa. Quando Augusto chegar, esse corpo já estará um pouquinho
preparado para o que ele quer. Não tem a perda de tempo de chegar aqui e pensar
quais exercícios trabalhar, então, a gente vai avançando nesse processo, que é
do intérprete-criador da companhia.
“Tri” é uma trilogia sobre o tridente, na qual a gente fala
um pouco de Exú, e eu quero homenagear Gil Mendes porque ele tem uma história
muito fantástica na minha vida e no trabalho da companhia, então, posteriormente, a gente quer
montar "Cinco Cenas", que serão cinco trabalhos produzidos por Gil, e eu quero
chamá-lo também para coreografar. Será um espetáculo para a rua. A ideia é
pegar esses cinco trabalhos que ele montou e levar para outro espaço para falar
de sua carreira, sua história, para homenageá-lo, porque ele foi uma figura
fundamental para a existência da Homem e para a minha base. Ele foi meu suporte, me deu muita força, sempre estava ali, sempre me ajudou muito. Eu faço só uma participação como
bailarino, um “solinho”... A idade não deixa mais, estou com 45 anos e não
tenho mais a estrutura para muita queda (risos).
Além dos palcos, você acha interessante o trabalho com audiovisual, a exemplo da participação recente no curta “Beatitude”, de Délio Freire?
Acho de extrema importância, e Vitória faz muito pouco. A videodança hoje também é uma ótima forma de divulgar o trabalho. Nós já
conseguimos fazer, em Vitória, uma espécie de minidocumentário com algumas
companhias locais. Eu e Mítzi sentamos, trabalhamos na edição e conseguiu
montar. Existem lugares no Brasil que não sabem que a gente produz dança, que
aqui há produções de qualidade. As pessoas sempre falam “nossa, mas eu não vejo
nada do Espírito Santo”. Acho que o Estado está tomando gosto pela videodança, por trabalhar com essa linguagem.
Acompanhe mais informações sobre a Homem Cia. de Dança no site da companhia e na página do Facebook.
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